quarta-feira, novembro 29, 2006

vamos conversar sobre sexo?

dois textos recentes proseavam, no espírito do tempo, sobre esse tema tão prosaico, tão espinhoso, tão gostoso...

um deles, da "carta capital" 419, de 15 de novembro de 2006, proseava sobre um livro de um colega jornalista cuja prosa se debruça sobre os hábitos sexuais brasileiros ao longo do século da canção, tomando como antena, pretexto e material de pesquisa ela, a canção brasileira.

o outro, da "carta capital" 414, de 11 de outubro de 2006, proseava sobre a versão pós-tudo do clássico grego "lisístrata", proseada-e-versada pelo rapper paulistano ferréz. greve de sexo era o mote de aristófanes, e continuou sendo o de ferréz, o da diretora teatral débora dubois, o da equipe que reinventou "lisístrata" para 2006.

música, teatro, literatura, poesia, rap, periferia, política, comportamento, sociedade, sexo (quanto tudo se mistura)... vamos conversar um pouquinho (sobre tudo isso &) sobre sexo?


POR DEBAIXO DOS PANOS
Um livro utiliza letras de canções para investigar a sexualidade brasileira

POR PEDRO ALEXANDRE SANCHES

A canção popular teria alguma utilidade além de fazer cantar, dançar e divertir? Uma vertente ainda incipiente de estudiosos quer responder que sim, motivada pela idéia de que elementos corriqueiros do dia-a-dia, como letras de canções, podem ser aliados valiosos para a compreensão do desenvolvimento das mentalidades humanas e, portanto, de sua própria história. O exame do modo como o amor e o sexo costumam aparecer em letras de música, por exemplo, poderia ajudar a decifrar como viveram e por onde caminharam homens e mulheres durante mais de um século de música gravada no Brasil.

O teste foi levado adiante pelo jornalista e pesquisador carioca Rodrigo Faour no recém-lançado História Sexual da MPB – A Evolução do Amor e do Sexo na Canção Brasileira (Record, 576 págs., R$ 64), que passeia pelos hábitos sexuais e amorosos dos brasileiros num arco que abrange da pioneira maestrina e compositora carioca Chiquinha Gonzaga (1847-1935) à anárquica funkeira carioca contemporânea Tati Quebra Barraco.

Uma das descobertas centrais do autor é a de que, até os anos 1960, a música brasileira foi quase sempre governada por um imaginário que fundiu e confundiu amplamente amor com sofrimento e proibição. A repressão sexual seria o outro lado da moeda tirânica do amor interditado, mas de dentro dessa dicotomia o autor retira uma outra hipótese, que pode surpreender ouvidos mais desavisados: contrariando impressões de que movimentos como a axé music e o funk carioca escancararam a sexualidade de modo inédito nas canções, Faour sustenta e demonstra que a pornografia e o desejo de liberação sexual são vetores mais ou menos constantes na música nacional, desde os tempos de, por exemplo... Chiquinha Gonzaga.

Segundo rememora o livro, foi ela quem compôs e lançou, em 1895, o maxixe Corta-Jaca, de versos como sou gostosa/ que dá gosto de talhar/ sou a jaca saborosa/ que amorosa faca está a reclamar/ para a cortar/ ai, que bom cortar a jaca/ sim, meu bem, ataca!/ assim, assim. A interpretação de Faour é de que o termo "jaca" fosse uma metáfora para se referir à vagina da narradora; e encontra apoio na indignação que a canção causou ao ser reinterpretada, em 1914, no Palácio do Catete, pela primeira-dama Nair de Teffé, esposa do presidente Hermes da Fonseca.

Embora ela o tenha tocado apenas ao violão, sem os vocais, aquela apresentação para uma platéia de elite foi o suficiente para que o senador Rui Barbosa proferisse na tribuna um discurso escandalizado: "É a mais baixa, a mais chula, a mais grosseira de todas as danças selvagens, irmã gêmea do batuque, do cateretê e do samba! Mas, nas recepções presidenciais, o Corta-Jaca é executado com todas as honras da música de Wagner, e não se quer que a consciência deste país se revolte!".

"A hipocrisia do brasileiro é intensa, mas sacanagem a gente sempre teve. Esse é um dos mitos que tento tirar. É engraçado ver os discursos indignados de cada época, eles são sempre muito parecidos", resume Faour. A reação moralista de Rui, portanto, guardaria parentesco distante com, por exemplo, a reprovação expressa nos anos 2000 contra versos como 69, frango assado, de ladinho a gente gosta/ se tu não tá agüentando/ pára um pouquinho/ tá ardendo, assopra ou Dako é bom, Dako é bom/ calma, minha gente, é só a marca do fogão, da periférica Tati Quebra Barraco. Tal discussão não raro envereda pelo campo estético, com críticos diversificados deplorando a qualidade musical de forró, axé ou funk, mas deixando em segundo plano a reflexão sobre o que as letras querem traduzir.

Embora acredite que há uma minoria constante de compositores dispostos a distender os costumes de cada época, Faour sabe que a história da vida privada brasileira passou por profundas transformações no decorrer do século XX. O culto ao amor romântico persiste, mas, notadamente a partir dos anos 70, se distanciou bastante de características típicas da dita "era de ouro" da canção brasileira.

"Confesso que fiquei um pouco chocado ao estudar os sambas dos anos 30, 40 e 50. É inacreditável o quanto a mulher é maltratada neles. A música brasileira era masculina, feita por homens, quando não havia ainda a revolução sexual nem o politicamente correto", diz Faour, que dedica a primeira parte do livro a esmiuçar as canções de amor interditado produzidas na primeira metade do século passado, e suas variadas conseqüências.

O percurso do cultivo masoquista ao amor sofrido encontra ápices em sambas como os de Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito (tire o seu sorriso do caminho/ que eu quero passar com a minha dor) e em fossas como as de Antonio Maria (se eu morresse amanhã de manhã/ não faria falta a ninguém) e Dolores Duran (ai, a solidão vai acabar comigo). Mas isso era só o começo.

Lupicinio Rodrigues se especializava em tratar o amor interrompido como nutriente para rancores e ressentimentos (mas enquanto houver força em meu peito/ eu não quero mais nada/ só vingança, vingança, vingança aos santos clamar/ você há de rolar como as pedras/ que rolam na estrada/ sem ter nunca um cantinho teu/ pra poder descansar), e ali a misoginia encontrava terreno fértil para prosperar. Assim advogavam Custódio Mesquita e Joracy Camargo, compondo para a voz desbravadora de Carmen Miranda: Quem é que faz o teu bifinho com batatas/ e estraga tanto as lindas mãos lá na cozinha?/ e no entretanto é só você que não me liga/ e ainda descobre sempre em mim cada defeito.

Indo para extremos trágicos, a apologia à violência era constante (e causava indignação bem menor que as letras de conteúdo sexual de outrora, ou mesmo de hoje). Alvarenga e Benedito Larcerda eram explícitos em Lá Vem Ela Chorando: lá vem ela chorando/ o que é que ela quer?/ pancada não é, já dei!. De tais abusos não escaparam nem mesmo os mais sofisticados compositores brasileiros, como Noel Rosa (mas que mulher indigesta/ merece um tijolo na testa) e Ary Barroso (essa mulher há muito tempo me provoca/ dá nela, dá nela/ é perigosa, fala mais que pata choca/ dá nela, dá nela).

Para o autor da História Sexual da MPB, o machismo até então inerente em nosso cancioneiro só deu primeiros sinais de abrandar com o advento da geração universitária dos anos 60, que teria em Chico Buarque um líder no esforço de lançar olhares mais generosos sobre o feminino por intermédio das canções. Ao longo dos anos 70, Milton Nascimento, Ivan Lins e Vitor Martins, João Bosco e Aldir Blanc, Gonzaguinha e outros seguiriam essas pegadas pré-feministas.

Artistas românticos como Roberto e Erasmo Carlos seguiam privilegiando o amor culpado e atormentado, e sambistas modernos como Martinho da Vila ainda cometiam arroubos machistas (já fiz seu retrato/ apesar do estudo, você não passa de uma mulher). Mas a contraditória década de 70, ditadura e tortura à parte, testemunhava uma revolução de costumes hesitante e temerosa, mas intensa e duradoura. Aos poucos, subiam de status e ganhavam visibilidade as canções de sensualidade e erotismo, bem como de duplo sentido e pornografia, todas revisadas exaustivamente por Faour.

Foi em meados dos 70 que compositoras como Joyce e Rita Lee, respectivamente na bossa e no rock, passaram a falar do feminino, e no feminino. Surpresa à parte contida no livro é a importância que ele atribui a Vanusa no campo da emancipação feminina, em temas popularíssimos como Rotina (minha amiga, o tempo passa/ não espera por ninguém... vê se fala, vê se grita/ vê se assume a sua vida) e Mudanças (hoje eu vou mudar/ vasculhar minhas gavetas... parar de dizer 'não tenho tempo pra vida'/ que grita dentro de mim, me libertar). Em 1982, com S.O.S. Mulher, Vanusa ensaiava enfim uma resposta à violência armazenada em décadas e décadas de canção masculina: A mão que te acaricia/ é a mesma que esbofeteia/ (...) o teu silêncio é cúmplice da violência/ acorda pra vida e pede socorro.

A canção dita "cafona" dos anos 70 avançava velozmente pelo terreno do comportamento social e sexual, por intermédio de artistas como Raul Seixas, Vanusa, Odair José, Wando, Sidney Magal etc. Em geral eram solenemente ignorados e hostilizados pelas elites da época, mas sofriam vigilância e censura constantes por parte do regime, como o pesquisador Paulo César de Araújo documentou fartamente no livro Eu Não Sou Cachorro, Não (Record, 2002).

Conforme a mulher se emancipava, surgiam até homens tentando fazer algo equivalente, como analisa Faour: "É difícil para o homem ser mais delicado, colocar os sentimentos à flor da pele. Ney Matogrosso foi o primeiro a colocar a sexualidade masculina na música. Antes, quando faziam isso, iam sempre para a grosseria".

A flexibilização dos costumes a partir dos anos 70 jogava holofotes sobre a androginia e a homossexualidade; também historicamente maltratadas nas letras das canções, essas testavam primeiras manifestações mais positivas, e ainda largamente tímidas e medrosas, que o autor investiga no bloco Os Gays na MPB.

Na persistente polarização com o amor interditado, as vertentes interessadas no sexo livre foram paulatinamente ganhando mais peso, em movimentos como o rock dos anos 80, a axé dos 90 e o funk dos 2000. Mas, segundo um balanço final do autor, o panorama ainda não chega a ser dos mais promissores. "Vai ver as letras de Los Hermanos, por exemplo. É só apologia ao sofrimento. Não são machistas, mas ainda fazem do sofrimento amoroso um dramalhão. Ficar reproduzindo esses estereótipos até hoje é um pouco demais", avalia.

Para criticar esses hábitos, ele recorre ao trabalho da psicanalista e sexóloga Regina Navarro Lins, inspiradora do trabalho e autora do prefácio, e que aparece no livro afirmando que "não é Marlboro, Coca-Cola ou IBM. A propaganda mais poderosa do mundo é a do amor romântico, que está entre nós há 800 anos".

Diz Regina, em entrevista a CartaCapital: "Esse tipo de estudo é importante, porque, através das letras, se pode entender como as mentalidades vão mudando ao longo do tempo. No passado, quando Lupicinio Rodrigues falava de vingança na separação, era só ódio e ressentimento. Quando Gilberto Gil canta Drão (de 1982), fala da separação de outro modo, mais suave e generoso. Felizmente hoje começa a sair de cena o amor romântico, que eu chamo de projeto-cilada, porque só envolve cobrança, projeção, sofrimento. Começa a entrar em cena um amor mais fundado na amizade, no companheirismo, na manutenção de um espaço próprio para além do outro".

Faour tenta enfim resumir as pretensões de seu livro, apoiado no estudo das mentalidades: "Quero alfinetar um pouquinho as pessoas. Quero que reflitam um pouco mais sobre o que escutam, que sejam mais críticas e conscientes, até para que os artistas de hoje em dia possam ser um pouco mais transgressores. Por que o machismo ainda é tão forte nas letras, por que nossos artistas gays não saem do armário até hoje? Acho inadmissível em 2006 ainda termos músicas machistas ou de amor romântico".

Mesmo pessimista até certo ponto, Faour encerra o livro se referindo a transgressores que estão em atividade no presente, como é o caso recente da experiência "neo-hippie" dos Tribalistas Arnaldo Antunes, Carlinhos Brown e Marisa Monte (eu sou de ninguém/ eu sou de todo mundo e todo mundo é meu também), e como acontece também na forte inversão de princípios e valores que os funkeiros enviam dos morros cariocas.

É dali que chega Tati Quebra Barraco, produzindo o avesso da misoginia dos sambas e boleros chorosos do começo do século passado e decretando, com tom agressivo, que tô podendo pagar motel pros homem/ e isso é que é mais importante. Trata-se de letra de canção, vinda da periferia marginalizada, mas deve dizer alguma coisa a mais sobre os cidadãos e cidadãs brasileiros que romperam a barreira do século XXI.


GREVE DE SEXO NA PERIFERIA
A Lisístrata de Aristófanes viaja da Grécia Antiga à atual guerra civil brasileira

POR PEDRO ALEXANDRE SANCHES

A idéia inicial, inusitada, era tomar o clássico grego Lisístrata, escrito em 411 a.C., e criar a partir dele uma peça teatral para jovens. Mas o que teria a ver com a juventude dos anos 2000 aquele enredo em que mulheres de Atenas e de Esparta decretam greve de sexo contra seus próprios maridos, com o objetivo de forçar o encerramento da Guerra do Peloponeso?

Nem os autores da idéia, os jovens produtores independentes Rennata Airoldi, Charles Geraldi e Paulo Almeida, do Grupo Já, saberiam responder com exatidão a esse primeiro dilema. Chamaram, para dirigir a peça, a encenadora Débora Dubois, uma especialista em montagens teatrais para jovens. Diretora das populares Pirata na Linha e Motorboy e atualmente em cartaz no Teatro do Sesi com uma adaptação "jovem" de O Retrato de Dorian Gray, ela primeiro hesitou, invadida por ondas de antipatia pelo tema e por não achar "a menor graça" na comédia de Aristófanes.

Em seguida, pensou encontrar uma alternativa: faria sentido falar daquilo se a releitura transportasse o tempo-espaço da Grécia ancestral para o da guerra civil travada cotidianamente em qualquer periferia, em qualquer favela brasileira. Artista e cidadã de classe média, Débora propôs convidar o escritor e rapper Ferréz, do Capão Redondo, para reescrever o texto, e então tudo se transformou.

Sob o punho e as convicções ideológicas de Ferréz, Lisístrata ganhou o subtítulo de Sexo, Drogas e Greve. A protagonista, uma suburbana bem brasileira chamada pelas companheiras de "Lísis", passou a defender a aliança das mulheres dos morros do Maluf e do Lalau numa greve de sexo contra seus maridos e amantes empenhados em defender, como soldados rasos do tráfico de drogas e de armas, uma guerra econômica muito mais rica e próspera do que eles. É com essa roupagem que a peça entra em cartaz na sexta 6, no Teatro Fábrica, uma antiga fábrica de automóveis convertida em teatro, em frente ao cemitério da Consolação, no centro de São Paulo.

Nem autor nem diretora nem equipe sabem decifrar se estão produzindo algo direcionado a adolescentes ou a adultos, a platéias centrais ou a espectadores que venham da periferia, a amantes do teatro grego ou do hip-hop. Mas, desde os levantes do PCC, a realidade não pára de ofertar motivações inesperadas para concretizar as intuições antes imaturas dos realizadores.

No início de setembro passado, a prefeitura de Pereira, uma das cidades mais violentas da Colômbia, criou um fato político ao acertar, numa reunião com cerca de 25 companheiras de membros de gangues e grupos armados, que elas adeririam a uma versão século XXI da "guerra" de gregas contra gregos de Aristófanes. "Se nossos maridos gostam tanto de sexo, vamos deixá-los sem sexo até que se sentem para falar de convivência", afirmou Omaira, esposa de um pistoleiro, a Lísistrata desse caso real e contemporâneo.

Na versão de Ferréz, Lisístrata vai mais além, e discursa pelo posicionamento das mulheres frente ao estado vigente, este em que "ficamos vendo novela, e essa matança todo dia, tiro pra todo lado, quem morre é os nossos parentes". Sua cruzada, nesta guerra de facções entre iguais, é para "parar de ver uma felicidade falsa e começar a de fato viver, sem os nossos barracos serem invadidos pela polícia a todo momento, sem nossos filhos serem chamados de lixo, de macacos; temos que aprender que toda essa vida que jogaram nas costas da gente de fato não é a nossa vida".

A "convivência" mencionada por Omaira toma conta da tentativa de união de mundos distintos de Débora e Ferréz, que antes dessa aliança nem se conheciam. A partir da provocação lançada por Ferréz, de que não seria possível localizar Lisístrata na periferia brasileira sem incluir personagens negros, foram convocados os atores Dárcio de Oliveira, Joice Jane Teixeira (autora de um dos raps da trilha sonora) e Pedro Paulley (que também atua na novela Cristal, do SBT).

Foi por conta do encontro que Débora se viu lidando com hip-hop e colocando as Mulheres de Atenas de Chico Buarque para conviver, na trilha sonora, com Racionais MC’s e funk carioca. Ferréz, por sua vez, se pegou advogando a favor do feminismo e contra a violência doméstica. A esse respeito, incluiu no texto outro episódio recente e real, protagonizado por moradoras do bairro de Casa Amarela, em Recife (PE). Inspiradas numa experiência uruguaia, elas adotaram o uso de apitos para alertar umas às outras quando estivessem sendo agredidas, sem ter de entrar em confronto direto com o agressor.

Na peça, as mulheres sublevadas escondem as drogas da comunidade numa igreja evangélica e andam munidas de apitos e de armas. Pistolas de brinquedo, em estilo desenho animado, foram a alternativa que Débora encontrou para representar o poderio masculino, que nas montagens de Aristófanes costuma ser representado por pênis gigantescos.

Sobre o convívio dos habitantes dos morros do Lalau e do Maluf com a igreja evangélica, Débora ensina, após ter sido ensinada por Ferréz: "No morro, você tem duas opções. Ou é amigo do tráfico, ou da igreja, senão você fica sozinho. Se precisa de um remédio, é um ou o outro que vai dar". No sentido inverso, ele aprende com ela primeiros rudimentos sobre o que é teatro.

O aprendizado mútuo vem dotado também de boa dose de conflito. Foi o que aconteceu quando Débora entendeu que o texto tendia a generalizar e atacar em bloco as elites e as classes médias. "Ele coloca os políticos misturados com a gente, como se fôssemos as mesmas pessoas, e isso eu não quis deixar", diz. O autor discordou, mas lhe deu autonomia para fazer o que quisesse. Ela excluiu algumas das referências incômodas.

Ferréz faz o contraponto: "No meu ver, 'generalizar' é uma palavra estranha. Há uma pequena, mas tão pequena elite que se importa, mas também não faz nada para mudar. Dizer todo mundo diz, mas conversa não enche geladeira. Para mim, o caos social ainda está só começando. Vejo isso claramente, é tanta opressão, desemprego, falta de perspectiva, onde se acha que isso vai chegar? Temos uma elite cega, corrupta, assassina, que faz tudo para se manter assim. Então, para mim é isso, pau, pau, pedra, pedra".

Se resiste, Débora também faz esforço para pacificar conflitos. Conta que tentou eliminar a personagem que vai à comunidade para tentar fundar uma ONG, a seu ver deslocada do contexto. Ferréz bateu pé, e conseguiu demonstrar a ela como por vezes a periferia se sente espoliada pelo que entende por estratégias dissimuladas para lucrar à sua custa. A fala da ongueira, ao ser rechaçada ("então vou abrir uma igreja"), foi acréscimo da diretora, e fez o autor sorrir.

Assim segue a negociação entre Débora, mulher de classe média, e Ferréz, homem de periferia. Acordos nem sempre são obtidos. A Guerra do Peloponeso não acabou por causa da peça de Aristófanes, o final de Lisístrata não é feliz, nem a violência acabou na Colômbia de 2006. No Brasil de 1968, o discurso do deputado oposicionista Márcio Moreira Alves, que incluía entre outros lances a insinuação de que as esposas dos militares entrassem em greve de sexo contra eles, culminou na decretação do Ato Institucional nº 5.

Os ventos de hoje, no entanto, parecem soprar para o lado contrário, como insinua o fato de o termo "coexistência" ser palavra de ordem em inúmeras bocas (é o tema, por exemplo, da 27ª Bienal Internacional de São Paulo, que começa no sábado 7). Ferréz e Débora parecem saber disso, intuitivamente. "Em alguns pontos, o pensamento dela também se torna revolucionário. A coisa é feita de forma a incomodar. O texto e a peça dão sorrisos e tentam tomar algo também", diz ele. "Talvez eu trate essa peça como um embrião, uma obra inacabada, dele e minha. Nossa", afirma ela.

domingo, novembro 26, 2006

let's take a walk by ourselves

teve pinta de data histórica, apesar de testemunhada por não tantas pessoas assim, a noite de quinta-feira 16 de novembro de 2006, quando aconteceu, na choperia do sesc pompéia (sp), o minifestival mix music. trata-se de um esforço colateral ao festival mix brasil, e é levado na garra pelos queridos rodrigo araujo e andré pomba. a edição deste ano foi espetacular.

desta vez, além de apostar na diversidade sexual, o mix music apostou, também, na diversidade geográfica. começou pelo extremo sul do brasil, pelo rio grande do sul da banda 808sex, furiosa e "snob" com seu electro-rock "mixed" (linda vocalista-menina, bravos marmanjões alternados entre o rock e a eletrônica) praticado naquela que (ainda) (ainda?) é a língua oficial da música indie (im)popular brasileira - ou seja, o inglês.

o poder comunicativo aumentou horrores na seqüência, com las bibas from vizcaya. segundo a lenda, são "nascidos no brasil e atualmente vivendo entre barcelona e amsterdã", mas... vai saber, lalaialaiá... ao menos a bfv (biba from vizcaya) marisa touch-fine eu conheço bem, aqui de são paulo mesmo: é o também querido alisson gothz, extraordinário no papel de popstar (e de sósia de glenn close em "ligações perigosas" conjuminada com rapunzel). se é que você me entende, marisa touch-fine e (a igualmente incrível) dolores de las dores são homens, assim como o dj george m. é mulher (e sofre nas garras aparentemente misóginas de dolores). o imaginário da(o)s bfv é vivíssimo, divertidíssimo, agudíssimo - além de ser típico produto da cyber-era, em que o boca-a-boca, o ouvido-a-ouvido e o olho-a-olho são conduzidos competentemente via internet (experimente e se deleite, os vídeos em you tube são de rolar).

veio em seguida o montage, electro-punk-ciranda made in ceará, liderado por daniel peixoto, um david bowie em cujo sangue borbulham luiz gonzaga, lampião, raul seixas, clemilda, chico science & cordel do fogo encantado - sem braseiro, sem fornalha, mas com muito forno e muita brasa, mora? o imaginário é (quase) tão trans quanto o das lbv (em cujo show, aliás, daniel peixoto fez aparição especial), mas, aqui, o objetivo não é, nunca, fazer piada (oba!).

por fim, de volta ao sul, pude conhecer finalmente a música, a rebeldia e a anarquia de palco meus conterrâneos paranaenses do bonde do rolê, possivelmente o ato mais tresloucado, entregue e endiabrado que eu vi nos últimos váááários anos. é funk-axé-carioca de letras em português beeeeem pornô (e, por vezes, transversalmente politizadas), mas de um jeito bastante distindo dos de deise tigrona, tati quebra barraco ou preta gil (que parecem ser, ainda assim, referências centrais para o bdr, o bonde do rolê). a folclórica tieta, por exemplo, é um dos temas, mas com rima bem mais direta que "eta, eta, eta"; no revés, james bond também é mote, mas de modo beeeeem transgressor ("saci, saci, saci/ james bond é travesti") - ai, não vou nem tentar explicar mais, porque sei que não vou conseguir.

a propósito. vendo-o(a)s ao vivo, não é assim tão difícil imaginar por que é que a garotada do cansei de ser sexy e a molecada (ainda mais intensa, na minha modesta opinião) do bonde do rolê têm tudo para virar (e de fato já vão virando, devagarinho) ícones bem mais que brasileiros. é assim, com muita energia e sem maracas ou berimbaus (como diria pedro noizyman), que números como css e bdr têm propagado ideais de um novo brasil para o mundo - e com enorme sucesso, segundo contam todas as notícias (não há, desta vez, críticos brasileiros à la carnegie hall, para jurar de pés juntos que a bossa nova é um fiasco lá nos estranjas).

é assim que esse(a)s garoto(a)s têm dado um nó no pensamento indie brasileiro (pois, ora, ser indie no brasil não era, até há pouco, ser impopular, ficar longe do "grande" público e se lamentar pela falta de sorte e atenção?), no mesmo instante em que os mutantes voltam em estado de graça (apesar de, infelizmente, sem rita lee). dão um rolê sozinho(a)s por aí e emplacam rapidamente planeta afora [css, cê sabe, está contratado pela sub pop (alô, nirvana!) e corre o mundo no cyber-trailer pós-mambembe do circo pós-globopop, sgt. peppers lonely hearts club band versão século xxi; bdr vai pelo mesmo rumo, embora não tão depressa nem tão intenso]; no transvés, conquistam até aum tanto de simpatia (e um monte de antipatia reativa) aqui no brasil natal (& suas bordas pós-fronteiriças).

um lembrete, no entanto, ainda falta ser feito. vem imediatamente à mente quando se ouve e/ou vê cansei de ser sexy, bonde do rolê, montage, las bibas from vizcaya, 808sex, daniel belleza & os corações em fúria, noporn, entre outras muitas-muitas-muitíssimas: nenhuma destas bandas de nova música popular transbrasileira existiria da forma como existe se, taking a walk (on the wild side) by them(our)selves, o caminho (essencialmente underground) não tivesse sido aberto antes por uma dupla paulistano-mineira-britânica que está inscrita no dna de todas essas bandas-filhotes: tetine.

se tetine não tivesse feito antes suas experiências de tez (trans)sexual-comportamental-musical, a bordo de muita performance, muita música mundial brasileira e muito teatro-rock-funk-carioca-paulista-mineiro-europeu, não existiria esta nova leva, não existiria a onda de sucesso desta nova patota.

se tetine não houvesse tanto falado do brasil aqui mesmo em sp (naquela época, o brasil de tetine era representado, no palco, por uma formosa atriz anã) e se tetine não houvesse, depois disso, tomado estrada do brasil para a europa & alhures, não existiriam css, bdr e um punhado de pós-siglas pós-(e-pré-)brasileiras.

o mix music 2006, mesmo que não o tenha citado explicitamente e/ou mesmo que não o soubesse racionalmente, foi um tributo iconoclasta e vivaz ao tetine. também por isso é que foi histórico. ave, tetine (&, na curva do tempo, ave, mutantes!, ave, nova música transglobrasileira!), made in brazil, filed under hybrid!:

domingo, novembro 19, 2006

um céuzão de suelys


um brasil novo, o do século xxi, é o que se pinta nas telas vívidas de "o céu de suely", filme de karim aïnouz, ora em cartaz, se você for assisti-lo. de acordo com a proposta-mestra deste brasil novo, você troca o antiquado julgamento moral das personagens por que possa se interessar por uma outra e nova postura, a da aproximação amorosa, generosa, cúmplice destas mesmas personagens. você se aproxima de hermila (guedes), de suely e das multidões ocultas por trás delas (você ali dentro, da multidão) com afeto, graça e generosidade. porque, quando as personagens são generosas com elas próprias, você também se vê impelido/a a ser generoso/a consigo próprio/a.

e você faz isso porque está no século xxi, morando num país quente, numa sociedade moderna, florescente, de extração pós-moralista, em pleno xeque e choque de auto(re)avaliação.

na abertura de "o céu de suely", surge de mansinho uma música de forte, fortíssimo impacto, a antecipar a personagem (ou pelo menos partes dela) que vai aparecer em poucos minutos. a música, em português, se chama "tudo que eu tenho", e é uma versão feita por rossini pinto para "everything i own", de david gates. a voz que a canta, em português brasileiríssimo, é de diana.


foi gravada no disco "diana", cbs, 1972, sob direção artística de raul seixas, que é co-autor, também, de outro clássico do repertório de diana, "ainda queima a esperança" ("uma vela está queimando, hoje é nosso aniversário...").

"tudo que eu tenho", a música-tema que descortina um céu de suelys, é uma balada soul de altos teores, psicodélica, um roberto carlos louro de cabelos cacheados, voz aguda e cílios longos. diana, ex-esposa de odair josé, hoje sumida na multidão, é uma das formiguinhas componentes daquela multidão onde se aninham hermila(s), suely(s), eu(s) e você(s). desta diana não será possível você se aproximar sem carregar um caminhão de generosidade e amor dentro do coração, se você for ouvi-la.

domingo, novembro 12, 2006

o hip-hop no feminino

abaixo, um outro e novo lado de "história do brasil através dos sambas de enredo - o negro no brasil", exatos 30 anos mais tarde, uma geração e meia depois. [recolhido da "carta capital" 418, de 8 de novembro de 2006.]


A GRIFE PERIFERIA
Uma produção sobre as meninas do hip-hop mobiliza o cinema nacional, a Rede Globo e o meio fonográfico

POR PEDRO ALEXANDRE SANCHES

A periferia ocupa a frente da cena mais uma vez. A fórmula de sucesso do filme Cidade de Deus volta a ser testada em Antônia, cuja estratégia prevê uma ação conjunta das indústrias cinematográfica, televisiva e musical. O retrato da vida em comunidades carentes das grandes metrópoles brasileiras torna-se, cada vez mais, objeto de desejo e consumo do cinema nacional, da tela da Rede Globo, das gravadoras multinacionais.

Se em 2002 o filme de ação terceiro-mundista de Fernando Meirelles e Kátia Lund foi criticado por estilizar a favela carioca de Cidade de Deus com foco no tráfico e na violência, Antônia ensaia agora uma reviravolta de perspectivas. Dirigido por Tata Amaral, em co-produção com a O2 Filmes, de Meirelles, elabora uma crônica do cotidiano da comunidade paulistana da Vila Brasilândia, sob a ótica feminina de quatro garotas que perseguem o sonho de se tornar cantoras famosas de hip-hop.

Pré-exibido nas recentes mostras cinematográficas do Rio e de São Paulo, Antônia só entra em circuito em 2007, mas seu imaginário chega antes à telinha global, a partir da sexta-feira 17, numa série homônima de cinco capítulos semanais. Inverte, assim, a trajetória de Cidade de Deus, que, depois do sucesso na tela grande, deu origem à série televisiva Cidade dos Homens, co-produzida (como acontece de novo, agora) por O2 e Globo.

Esse novo teste de simbiose entre cinema e tevê corresponde à tentativa de dissolver outras fronteiras. Desenvolvido no limiar entre a ficção e o cinema documental, Antônia propõe também uma fusão radical entre o cinema e a música. As quatro garotas que protagonizam o filme, Negra Li, Leilah Moreno, Cindy e Quelynah, são, de fato, cantoras e compositoras de hip-hop e/ou rhythm'n'blues. A maior parte do elenco é composta não de atores, mas de músicos de hip-hop ou outros gêneros (o sambista Thobias da Vai-Vai e a funkeira "de raiz" Sandra de Sá, por exemplo, interpretam os pais de Preta, a personagem de Negra Li).

A gravadora Universal, que outrora ajudou a revelar o músico Seu Jorge (mais tarde um dos protagonistas de Cidade de Deus), está lançando os novos discos de três das quatro artistas, Negra Li, Leilah e Cindy. As carreiras de Leilah e Cindy já estão a cargo da 3Plus, uma empresa agenciadora de música eletrônica de alcance internacional, cujos integrantes ajudaram a impulsionar nomes como o do DJ paulistano periférico de drum'n'bass Marky.

Diante de tais dados, a pergunta é inevitável: a cultura e a realidade social da periferia consolidam-se como produto de consumo, como grife em territórios antes só ocupados por marcas e corporações?

Tata Amaral, egressa do cinema independente paulistano, procura se equilibrar entre os valores sociais e de mercado: "Thaíde (músico pioneiro do hip-hop brasileiro e ator-revelação do filme) diz que Antônia não é legal só para a Vila Brasilândia, mas também para a moçada do rap, porque mostra que existe música, talento e vida na periferia, que estamos habituados a associar somente à pobreza e violência. A gente unifica muito, e não é verdade, muitos lugares da periferia são classe média baixa, são consumidores. Por outro lado, eles falam que todo branco para cá da ponte é playboy, e também não é assim. Tenho certeza de que funcionei como uma ponte".

Fernando Meirelles também defende a linha fina entre a responsabilidade social e o apelo mercadológico de projetos como Cidade de Deus e Antônia. "Sinto que esta linha de filmes recentes tenta retratar o Brasil menos favorecido com uma abordagem mais humana. O cinema brasileiro sempre tratou desses temas, mas com uma mão ideológica mais pesada", diz, tomando partido da própria opção estética. "Esses mais recentes tratam dos mesmos temas, mas com um olhar mais voltado para as experiências individuais. Não são filmes estritamente sobre sociologia, são também sobre psicologia."

Ele justifica a entrada desses projetos na televisão, amplificada pelo poderio global: "Gosto muito de ver na tevê uma dramaturgia que fala sobre as periferias das grandes cidades de forma não estereotipada. Acho que a série trará grande identificação para a população de classe média baixa de São Paulo e, ao mesmo tempo, é bastante reveladora para quem mora na margem direita dos rios Pinheiros e Tietê".

Em termos artísticos, a chegada ao ambiente ainda praticamente inexplorado do hip-hop feminino aprofunda uma guinada da Universal, uma gravadora que se tornou líder de mercado nos anos 90 explorando o pop sensual, festivo e despolitizado da axé music. De 1997 para cá, a Universal tem veiculado vertentes mais participantes da música de periferia, o que fez, por exemplo, ao revelar os grupos Farofa Carioca (de Seu Jorge) e AfroReggae e ao abrigar o hip-hop altamente contundente de MV Bill.

"Não sei se vamos conseguir, mas estamos tentando criar uma espécie de Motown brasileira", afirma Max Pierre, diretor artístico da Universal, referindo-se à meca do pop negro norte-americano, que nos anos 60 revelou Stevie Wonder, Diana Ross e Michael Jackson, entre muitos outros.

"A música participante não aconteceu ainda no Brasil, mas isso é até acontecer. Não conseguimos até agora fazer essa ponte, mas a qualquer momento pode ocorrer. Tomara que seja aqui", diz Pierre, ex-executivo da gravadora da Globo (a Som Livre), lembrando que ele próprio também é oriundo de subúrbios periféricos, de Minas Gerais e do Rio.

É fato que, no ambiente musical, ainda não se fez um sucesso comercial do porte de Cidade de Deus (que atraiu 3,3 milhões de espectadores) ou de Carandiru (4,7 milhões), de Hector Babenco. O CD Falcão, de MV Bill, vendeu até agora cerca de 10 mil cópias, mesmo com toda a repercussão (maximizada pela Globo) do documentário e livro homônimos. Nas palavras de Pierre, "não é uma venda que se possa desprezar", mas ele mesmo lembra que não chega perto da bolha de vendagens estratosféricas dos anos 90, quando, por exemplo, o grupo baiano de axé Terra Samba "vendeu 3 milhões de cópias do primeiro disco, 50 mil do segundo e nada do terceiro".

O clamor pela responsabilidade social agora se mistura às cifras de marketing e comércio, mas trata-se de uma preocupação que parte também dos novos líderes culturais que despontam dos subúrbios e favelas para o "centro", segundo Tata: "A responsabilidade social é muito presente no discurso da periferia. Há uma consciência de que não basta reclamar, de que tem de apontar soluções. Eles conquistaram um discurso de superação, de solução, de esperança e isso impregnou muito Antônia. Vi que me comunicar com essas pessoas é privilegiar um discurso de superação, e descobri que o discurso de violência e miséria é um discurso da classe média, não deles".

Músico de classe média que assina com o rapper Parteum as trilhas sonoras de Antônia no cinema e na tevê, Beto Villares é quem ensaia um diálogo positivo entre o marketing social e a responsabilidade social: "As meninas têm, na vida real, os CDs, o filme e a série ajudando-as a conquistar o que querem. Se por um lado pode ser um produto de consumo para os do lado de cá da muralha social, por outro podem ser o caminho para quem vem do lado de lá ter seu lugar no mundo e na música".

Se é assim, conceda-se a palavra a Negra Li, que, como sua personagem, é moradora de Vila Brasilândia, já trabalhou como frentista de posto de gasolina e luta para conservar um nicho conquistado no difuso cenário atual da música brasileira. "O melhor de tudo, para mim, é fazer um filme de hip-hop na periferia, no lugar em que nasci, falando sobre as mulheres."

Ela já reage a abordagens céticas habituais na mídia: "Teve uma discussão na Mostra do Rio, um cara de cinema falou 'ah, por que vocês não falam de preconceito?'. Não, querido, não é isso que o filme propõe. Ele mostra o nosso dia-a-dia, para que as pessoas possam ver a periferia de uma outra forma, mais positiva".

Mas o ponto crucial, para ela, parece ser o de sua auto-representação, seja no cinema, na tevê ou na música. De início, assume a própria inexperiência no âmbito musical, em parte transposta para o CD recém-lançado Negra Livre, que oscila entre o rap, o soul, a MPB e o pop americanizado:

"Hip-hop é minha filosofia de vida, com as batidas, o protesto. Mas sempre adorei as músicas românticas, sempre quis o lado soul também. Ficava no espelho imitando Mariah Carey e Whitney Houston. Não posso negar que minhas primeiras influências foram as americanas, depois (o parceiro) Helião me mostrou Cássia Eller, Jorge Ben Jor, Gilberto Gil... Aí fui conhecer Elis Regina, Leny Andrade, Baden Powell... Quero ampliar minhas referências, estou me conhecendo ainda. Meu CD fiz até onde sei. Eu não sei mais que isso, tenho 27 anos".

Mais segura ela mostra-se no desejo de auto-representação como mulher, negra, de periferia, que procura enxertar melodia no ambiente duramente masculino do hip-hop. "Ninguém sabe da luta do pessoal que quer viver de rap. Poucas mulheres são divulgadas, Antônia vai ser muito importante para o lado feminino do hip-hop. Na tevê, também, existem muito poucas referências de mulher negra, por isso as meninas negras querem alisar o cabelo, ficar parecidas com a Xuxa. No filme serão quatro estilos para elas escolherem, não tem nariz fino, não tem aquele estereótipo europeu de beleza que se impõe."

Tata Amaral, que vive o processo análogo de conquistar espaço para a condição feminina dentro do cinema nacional, dialoga com Negra Li, seja nos aspectos mais imaturos, seja nos mais maduros. "Segurei muito as meninas, tinha de dizer que não ia ter maquiagem nem salto alto, que a Preta não podia usar o tênis Puma da Negra Li. Elas são muito comprometidas com a imagem da mulher, do hip-hop, e eu tinha de explicar: 'As personagens são as personagens, não são o que vocês gostariam de ser'."

Por outro lado, aprendeu com elas conceitos que modificaram sua relação com a estilização da violência. “Eu sou uma pessoa que fala de violência nos filmes, ela é cinematográfica. As meninas é que diziam 'nossa, Tata, pelo amor de Deus, tem de maneirar'. A violência no filme está muito filtrada pelo olhar delas. No convívio, você vê como se trata mesmo de um estigma atribuído, que associa automaticamente a periferia ao medo." A diretora surpreende-se, então, ao constatar que o longa-metragem que filmou na Vila Brasilândia resultou no menos violento e mais delicado entre os três que já assinou.

Não é que Antônia deixe de falar sobre violência (inclusive a violência praticada por mulheres, que mal aparece em obras como Cidade de Deus ou Falcão), morte, preconceito, discriminação, segregação social. São temas que perpassam todo o filme, mas sob um olhar estritamente feminino, positivo, musical, desejoso de superação. Daqui por diante, resta descobrir como reagirão a esse novo olhar as antenas desabituadas da Globo, da Universal, do cinema brasileiro e da grande platéia brasileira.

quarta-feira, novembro 08, 2006

mas, sem o labor do negro, o senhor nada fazia...


castelo da contradição, a rede globo fez seu braço fonográfico (a som livre) lançar, em 1976, um disco chamado "história do brasil através dos sambas de enredo - o negro no brasil". castelo de contradição, a rede globo deixou a som livre resgatar da poeira, em 2006, o obscuro e esquecido disquinho, na estonteante segunda etapa do projeto "som livre masters", coordenada pelo titã charles gavin.

projeto coletivo de excelência, reunindo nomes de várias escolas de samba, o disco de 1976, agora redivivo, contava com autores do status de silas de oliveira, mano décio da viola, darcy da mangueira, anescar do salgueiro, noel rosa de oliveira, geraldo babão e tantos outros; com cantores do quilate das de darcy da mangueira, cici, jorge machado, dinalva, everaldo cruz, abílio martins, baianinho, noel rosa de oliveira, anescar do salgueiro, nilton russo, etc.; com músicos do porte de dino sete cordas, josé menezes, chico batera, bucy moreira, arnô canegal, raul marques, e assim por diante.

olhando assim por cima pode parecer bobagem, mas não é.

em tempos de rescaldo do ufanismo do horripilante presidente médici, os sambas das agremiações carnavalescas cariocas prosseguiam e repisavam o hábito de dedicar seus enredos e pompas aos "vultos históricos" do brasil brasileiro. não poucos "intelectuais" devem ter torcido seus narizes, à época, diante do ataque de fuga da realidade, de autismo e de alienação que então parecia acometer os festivos sambistas dos morros cariocas - com tanta tortura e tanto terrorismo refluindo por baixo do mundo, como é que aqueles "ignorantes" se davam ao desplante de ficar derivando interesses subalternos (à ditadura) para dom pedro, tiradentes, princesa isabel, aquela tralha toda?

para o disquinho da globo, que revigorava sambas-enredos apresentados no dilatado intervalo 1957-1976, nossa intelectuália nem deve ter torcido narizes, já quem de sua existência nem deve ter tomado conhecimento - se tomasse, torceria.

reouvir hoje "história do brasil através dos sambas de enredo - o negro no brasil", no entanto, é um espanto, um susto, um sobressalto. graças ao ouvido aceso de gavin, podemos nos deparar com um mostruário condensado do lado negro da história do brasil, aquele que, lado a lado com pedro álvares cabral, josé bonifácio & que tais, exasperava a paciência de quem, brasileiro da gema, não agüentava o derrame de caricaturas históricas que brotava da avenida e (de onde?) da telinha da globo a cada fevereiro. (exasperava, agüentava, brotava? ou exaspera, agüenta, brota?)

se, neste 2006, concedermos escutar com todo esse atraso o tal disquinho e passarmos sobre nossas idéias preconcebidas a borracha suave do futuro, poderemos enfim entender quão pouco autismo e quão pequena alienação corriam pelo sangue dramaticamente realista (embora amordaçado) dos compositores, das passistas, dos ritmistas e das baianas que levavam para a avenida e traziam para a tela da globo o lado histórico da história "passada" do brasil. (levavam, traziam? ou levam-e-trazem?)

pois, aí está, quem foi mesmo que nos fez supor que tal história fosse "passada"? e se ouvíssemos como se dissessem respeito ao tempo presente (de 1957 ou de 1976) aqueles sambas-enredos edulcorados pródigos em contar sobre zumbi, ganga zumba, palmares, valongo, chico rei, chica da silva etc. etc. etc.? e se (re)ouvirmos, em 2006, tais sambas "históricos" como se estivessem falando sobre o presente de agora, com a voz que lhes sopra o pulmão cansado?

segue-se abaixo um painel com trechos de lindíssimos sambas negros de várias escolas cariocas, cravados entre os primórdios do advento "prafrentex" da era bossa nova (a bênção, presidente juscelino kubitschek) e o início do processo de distensão da fóbica, constipadíssima ditadura militar (er, a bênção, presidente ernesto geisel).

se topar a seriíssima brincadeira, experimente procurar pensar em tais trechos como se eles dissessem respeito não só aos africanos acorrentados em carros de boi do brasil colonial, mas também aos afrodescendentes do brasil pulsante da virada dos anos 50 para os 60, do brasil estup(o)rado pela ditadura de 1976, do brasil ainda mui precariamente democrático de 2006 (a bênção, presidente lula). ou seja, como se eles dissessem respeito a todos nós, por mais "branquinhos" que por fora pareçamos ser. [e alô, periferia!, e alô, favela!, e alô, ruas, becos & vielas!, e alô, copeiras, arrumadeiras, mordomos, babás, garçons & diaristas das tradicionais famílias (brancas) metropolitanas!, e alô, presídio!, e alô, pcc!, e alô, e alô, e alô...]

"navio negreiro" (djalma costa-amado régis), salgueiro, 1957: "castro alves (...) em versos retratou/ o navio onde os negros/ amontoados e acorrentados/ em cativeiro no porão da embarcação/ com a alma em farrapo de tanto mau trato/ vinham para a escravidão"

"negro na senzala" (darcy da mangueira), unidos da tijuca, 1958: "nos idos tempos coloniais/ no brasil de escravo e senhor/ o negro era transladado/ e depois arrematado/ pelo escravizador. e dessa época pra cá/ sofrimento era demais, era demais/ negro tinha que trabalhar/ trabalhar até cair/ no engenho de açúcar/ na colheita de algodão/ negro era castigado/ pelo senhor do sertão. a casa grande/ requinte de grande fidalguia/ mas sem o labor do negro/ o senhor nada fazia. preta velha/ ama do filho do senhor/ negro na senzala/ esquecia os momentos de dor/ com lindas danças e cantorias/ preto velho não pensava/ em seus momentos de agonia"

"palmares" (noel rosa de oliveira-anescar-walter moreira), salgueiro, 1960: fala da "tróia" pernambucana de zumbi, "lá do alto da serra do gigante", "meu maracatu é da coroa imperial/ é de pernambuco/ ele é da casa real"

"leilão de escravos" (mauro affonso-urgel de castro-cici), unidos da tijuca, 1961: "e o negro trabalhava o ano/ de janeiro a janeiro/ o chicote estalava/ deixando a marca do cativeiro/ e na senzala/ o contraste se fazia/ enquanto o negro apanhava/ a mãe preta embalava/ o filho branco do senhor/ que adormecia/ tenha pena de mim, meu senhor/ tenha, por favor"

"chica da silva" (noel rosa de oliveira-anescar), salgueiro, 1963 (o que está no feminino, na letra, bem poderia ser convertido ao masculino, com efeito tão devastador quanto): "e a mulata que era escrava/ sentiu forte transformação/ trocando o gemido da senzala/ pela fidalguia do salão/ com a influência e o poder do seu amor/ a barreira da cor/ francisca da silva do cativeiro zombou"

"chico rei" (geraldo babão-djalma sabiá-binha), salgueiro, 1964: os escravos escondem os ouros de minas entre os cabelos, esperando "completar a importância para comprar suas alforrias"

"sublime pergaminho" (zeca melodia-nilton russo-carlinhos madrugada), unidos de lucas, 1968, mitificando os personagens envolvidos na extinção (extinção?) da escravatura [e alô, cotas raciais!, e alô, cotas sociais!]: "e de repente uma lei surgiu/ que os filhos dos escravos/ não seriam mais escravos no brasil/ mais tarde raiou a liberdade/ daqueles que completassem 60 anos de idade/ oh, sublime pergaminho/ libertação geral/ a princesa chorou ao receber a rosa de ouro papal/ uma chuva de flores cobriu o salão/ e o negro jornalista/ de joelhos beijou a sua mão"

"heróis da liberdade" (silas de oliveira-mano décio da viola-m. ferreira), império serrano, 1969 [e alô, negra elza soares!, e alô, negro johnny alf!]: "passava noite, vinha dia/ o sangue do negro corria/ dia-a-dia/ de lamento em lamento/ de agonia em agonia/ ele pedia/ o fim da tirania (...) essa brisa que a juventude afaga/ esta chama que o ódio não apaga/ pelo universo é a evolução/ em sua legítima razão"

"ganga zumba" (carlinhos sideral-colid filho), canários das laranjeiras, 1970: num banzo sublime, de volta ao cenário pacífico-e-bélico de palmares, "foi rei zumbi que ordenou/ invocando o deus da guerra/ entre vales, rios, serras/ as lanças feriam/ luzindo ao sol redenção"

"a festa dos deuses afro-brasileiros" (baianinho), em cima da hora, 1974, e "magia africana no brasil e seus mistérios" (jorge t. machado), unidos da tijuca, 1975: aqui o tema era o candomblé, tão ou mais marginalizado e perseguido que seus praticantes. entre os termos sincréticos que desfilam pelo enredo, feitiço, atabaques, mucamas, feiticeiros, pajés, índios, exu, ogum, oxóssi, xangô, oxumaré, nanã, oxum, iansã, iemanjá, oxalá...

"valongo" (djalma sabiá), salgueiro, 1976 [e alô, negro jorge ben!, e alô, negro tim maia!]: "nações haussá, gege e nagô,/ negra mina e angola/ gente escrava de sinhô/ foram muitas suas lutas/ para integração/ inda hoje/ desenvolvendo esta nação"

e a gente dizia assim "não gosto de samba-enredo", "não gosto de samba", não dizia? (dizia? diz?) seria porque não queríamos ouvir o jorro de denúncias e acusações - o jorro de dor - que o lado de lá da muralha social nos fazia, enquanto nos construía as muralhas, os edifícios, os claustros, os asilos, os conventos, as escolas, os berçários?

eram talvez pequenas e marginalizadas e irrisórias essas peças de resistência. mas, lembremo-nos, elas atravessavam a avenida, salpicavam a tela tão futilmente visual e tão cruelmente reacionária da rede globo, rodavam no giro de vinil da som (nem tão) livre. ainda que fossem poucas, eram, dentro do mais nobre espírito popular e multirracial, a linguagem de fresta enchendo de sol nossos porões. ainda que fossem poucas, ajudaram a conformar o país que temos hoje, que neste mês de novembro se desdobra, amoroso, em comemorações garbosas ao dia da favela, ao dia nacional da consciência negra, à grande e paulatina saída do armário dos donos marginalizados deste brasil.

não se assuste, pessoa, se, festivos e repentinos, eles (nós?) lhe disserem (e se dissermos?) que a vida é boa.

sexta-feira, novembro 03, 2006

brasil, 29 de outubro de 2006


assim se separavam, no final da noite de 29 de outubro de 2006, o todo esvaziado da avenida paulista e o (pequeno) pedaço dela que queria comemorar a segunda vitória presidencial de luiz inácio lula da silva.

ficar olhando aquela faixa que apartava um mundo do outro (ou a totalidade dos brasileiros de 61% dos brasileiros "válidos") me causou um forte impacto, um susto, um choque. eu só conseguia olhar e pensar que, sim, eu "sou" povo, mas que, sim, eu também "sou" mídia. e aí é nó nos miolos, né?, porque eu olhava e já não sabia se eu venci eu, ou se eu fui derrotado por mim, ou se eu venci me derrotando, ou se eu perdi triunfando, ou se isso tudo ao mesmo tempo...

os dias seguintes vieram confirmar aqueles primeiros desconfortos: a dita "mídia" é, mais que nunca, a bola da vez. ela (ela? "ela", a mídia, é uma mulher? não, né?...) está no centro do palco no ataque continuado, mas está também, pela primeira vez, na defensiva, qual a quarta parede demolida de um grande teatro não mais ilusionista.

provando uma pequena dose do próprio remédio (ou veneno? a diferença está na dosagem?) que gosta de aplicar, a mídia vai ao foco e ocupa os holofotes dos que querem cobrar-lhe os momentos transtornados (e infelizmente cada vez mais freqüentes) em que ela (ela?) tem desrespeitado furiosamente seus próprios preceitos, pintando para si uma imagem feiíssima de último bastião da ditadura militar, aquela (aquela?, essa? "ela", a ditadura, é uma mulher? não, né?...) que tanto esperneia para nunca se extinguir de vez.

vou te contar, viu?, tá difícil, tá dureza.

mas, por sobre todo conflito e por sobre toda aflição, havia - e há - a comemoração, a celebração, o festejo, o sentido de sonho (mais uma vez) materializado na vida cotidiana e no amor-próprio de milhões nada desprezíveis de cidadãos e cidadãs. as fotos abaixo, amadoríssimas (feitas por mim, pelo gabriel e pela márcia), retratam um pedacinho simbólico do brasil, um naco avenido-paulistano deste país (este? "ele", este país, brasil, é um homem? não, né?...) que deseja celebrar lula, e tem razões de sobra para festejá-lo (ou seja, a festejar-se), a despeito da sanha irada dos setores mais antidemocrátcicos da mídia [e, por espelhamento, da sociedade toda, dela, essa menina ("ela"?, a sociedade é uma menina? é, e não é, né?...)].

às imagens então (clicando em cima de cada uma, aparecerão com maior riqueza de detalhes), e meus-nossos parabéns a este brasil que somos muitos (e, portanto, a mim mesmo, que, além de "povo" e "mídia", também sou "brasil"):

1. as minorias: os sambistas (alô, leci brandão!, alô, netinho!), os rappers (alô, mano brown!), os negros, os repórteres branquinhos, os gays, as mulheres, os orientais, os migrantes, a interlândia, a passárgada, o sassaruê...







2. as utopias, a realidade, a guerra, a paz, a paz em guerra, em guerra pela paz (alô, tom zé!)...






3. a família (a cena é esvoaçada, mas trata-se de uma avó e de uma neta, que valsavam ao som do samba)


4. o brasil