domingo, agosto 27, 2006

o circo brasil

todo mundo vai ao circo, menos eu. menos eu. como pagar ingresso, se eu não tenho nada? fico de fora escutando a gargalhada.

a minha vida é um circo. sou acrobata na raça. só não posso é ser palhaço, porque eu vivo sem graça. (*)

e, não, o lindo circo de que se trata não se chama plutão. este lindo circo se chama brasil.


O CIRCO BRASIL (**)
Na periferia das grandes cidades, a arte circense, em sua forma mais tradicional, luta pela sobrevivência


POR PEDRO ALEXANDRE SANCHES

Crianças e adultos gargalham gostosamente, concentrados nos melhores lugares de uma platéia semi-ocupada, sobre o chão de serragem e sob o céu de lona. É quinta-feira, horário nobre, e as pessoas que preenchem parte das 1.700 cadeiras não estão vendo telenovela nessa noite. Preferiram ir ao circo, aproveitando o preço promocional do ingresso em dia de semana, de indistintos R$ 5 para todo e qualquer espectador. Estamos na Vila Iracema, periferia de Barueri, município periférico da Grande São Paulo, a 29 quilômetros da capital, numa sessão do Circo Stankowich, 155 anos de idade, cuja agenda de espetáculos se encontra com dificuldade em roteiros da grande imprensa ou na internet.

O elefante Bambi faz entrada triunfal, sob a autoridade do domador argentino Fred Andreoli, pouco depois de um desfile de lhamas, pôneis, ovelhas, jegues e um dromedário. O locutor em off explica que aqueles bichos "são criados livres e soltos, contrariando a tese de que os animais de circo são maltratados". Nos bastidores, o domador de todos eles garante: "Não utilizo nenhuma espécie de violência. O adestramento é com comida, só".

As ressalvas são necessárias, pois o Stankowich vive sob bombardeio de instituições defensoras dos direitos animais, por ser dos poucos que ainda resistem à tendência de eliminação de números com bichos no picadeiro. Eles já são proibidos por lei em cerca de 30 municípios brasileiros (inclusive a capital paulista) e em todo o estado do Rio de Janeiro.

"Proibir os animais é uma besteira grande. Você mata a alma do circo", protesta o italiano Orlando Orfei, 86 anos. O circo que leva seu nome se ressente da ausência completa de animais – e, em muitas sessões, também de público, como aconteceu em quatro sessões presenciadas por CartaCapital num domingo ensolarado, na Vila Baeta, em São Bernardo do Campo.

Ancorado no Brasil desde 1968 e ex-domador por preferência, Orfei hoje apenas encerra o espetáculo, com o tradicional "balé das águas", de que se diz inventor. Assim ele se refere à lida circense: "Às vezes ganhei muito dinheiro. O circo me deu tudo. Dinheiro, satisfação, aplausos. É uma vida linda". Dura, além de linda? "Não pode ser dura uma coisa de que você gosta. É duro, e fadiga, mas para mim estar fora do circo é estar fora do mundo".

É forte o contraste entre esse cenário e o do chamado "novo circo", presente nas companhias internacionais que têm passado pelo Brasil. Há os que não se utilizam mais do formato de lona e picadeiro (apresentam-se em teatros elegantes), como o Cirque Plumme, francês. Mas mais emblemático é o caso da companhia canadense Cirque du Soleil, em cartaz em São Paulo com o espetáculo Saltimbanco, misto de circo com superprodução da Broadway. Sua lona, montada em terreno asfaltado da Eletropaulo, ao lado da Daslu, abriga até 2.500 pessoas dispostas a pagar entre R$ 50 (em meia-entrada para estudantes) e R$ 400.

A vinda do Soleil causou controvérsia, porque a empresa CIE Brasil, promotora da turnê no País, obteve autorização do Ministério da Cultura, via Lei Rouanet, para captar R$ 9,4 milhões em patrocínio. Depois que a polêmica eclodiu na imprensa, o MinC afirmou que vetou parte dos R$ 16,6 milhões solicitados originalmente para a temporada paulistana e todos os R$ 5,8 milhões para a carioca. "O Soleil, que vem de fora, ganha US$ 10 milhões de patrocínio, é ridículo. Os circos brasileiros não têm apoio", critica Mário Orfei, filho e assessor de Orlando.

Márcio Stankowich, pertencente à sexta geração da família e representante do segmento nas Câmaras Setoriais instaladas pelo MinC, mira a questão sob outro ângulo: "Circo-família não tem tempo para correr atrás de patrocínio". E completa, fazendo comparação com as novas gerações formadas em escolas especializadas e muitas vezes desconectados das tradições familiares que governam os circos mais antigos: "Um circo-escola pode ficar dois meses parado no mesmo lugar, a gente não pode, é circo de estrada. O circo tradicional não precisa de dinheiro, precisa de condições. Se tiver uma área apropriada e apoio da prefeitura, ele se ergue sozinho".

CartaCapital testemunha uma realidade em tudo diferente da do luxuoso Soleil, numa segunda-feira em que a caravana Stankowich está prestes a partir de Barueri para Franco da Rocha, outro município periférico da Grande São Paulo. Em pleno processo de desmonte, ainda há tempo para dois derradeiros espetáculos, em uma platéia semidesativada (mais da metade das cadeiras foi acondicionada nos caminhões).

O carro de alto-falante passou o dia circulando e anunciando duas derradeiras sessões às 19h e 21h, a "preços populares". Não há Jornal Nacional nessa noite, para centenas de crianças e adultos que se amontoam na fila e depois abarrotam em cadeiras ou de pé, nos corredores. O preço, para brancos, pardos e pretos que enchem o ambiente de gargalhadas, é R$ 3. Para todos, sem ingressos VIP. Durante o espetáculo, o locutor em off interrompe as atrações para o breve aviso: "Estamos precisando de cem homens para ajudar a desmontar o circo, hoje e amanhã. Paga-se por hora".

Ali, os jovens artistas se desdobram em inúmeros papéis, como é praxe no circo tradicional. Bilheteiro na entrada e vendedor de salgadinhos durante o intervalo, Rodrigo Moura sai correndo no início do segundo ato, para se materializar no trapézio como aparador, agarrando os acrobatas após "saltos-mortais" duplos e triplos. Rodrigo tem 18 anos. "Treino desde os 7 anos, primeiro no balanço, depois lá em cima, por um ano. Cair, a gente não cai. Na hora, não cai. Mas machuca muito, principalmente o joelho", conta.

Gil Silva, 42 anos, ex-bailarina, hoje é vendedora de tíquetes para pipoca, cachorro-quente, algodão-doce e churros. Tornada circense ao se casar com um dos eletricistas da trupe, tem quatro filhos: "Uma trabalha com circo em Paris, dois são trapezistas da Trupe Stankowich, e a outra não quis ser artista, é pipoqueira aqui no circo". Diz assimilar plenamente a vida nômade: "A gente sofre um pouquinho, mas já não acho mais dificultoso. A única coisa que me incomoda na vida de praça é a chegada, a demora de dois ou três dias para ter água".

Mito central da vida nômade, a escassez de água freqüentemente contrasta com imagens de fartura à luz dos holofotes (como as exibidas no balé aquático de Orlando Orfei). Nos bastidores, a chegada a cada cidade significa nova rodada de tarefas de infra-estrutura, como providenciar documentos junto a prefeitura, bombeiros, Polícia Militar, Juizado de Menores etc. e obter acesso a energia elétrica e rede de água.

Embora suntuoso e aparentemente mais bem equipado que o Stankowich, o Orlando Orfei, que viveu o auge de popularidade nos anos 70 e andava fora de circulação ("de volta a São Paulo após 16 anos" é o mote atual), não parece de todo recuperado. Naquele domingo em São Bernardo, os 1.900 lugares estiveram majoritariamente desocupados, exceção feita ao único setor sempre lotado, o das arquibancadas laterais, quase no bastidor do circo, a R$ 15 o adulto e R$ 10 a criança. Nas cadeiras centrais, de R$ 40 (adulto), o panorama é desértico.

Na praça de alimentação, a vendedora Suelen da Silva Gomes, de 21 anos, lembra em tudo a bilheteira do Stankowich: veio para o circo há três anos, por namorar um eletricista. Prepara cachorros-quentes enquanto nina a filha Nicole, de 1 ano. Mas a maquiagem caprichada já evidencia: na abertura e na apoteose do espetáculo, lá estará ela, de plumas vermelhas, bailarina-vedete, dançando a salada mista de músicas em espanhol, inglês, italiano e (pouco) português que escapa das caixas de som.

A peruana Eva Terry, 60 anos, que vende espadas mágicas com luzes coloridas no intervalo, já foi contorcionista, acrobata e mágica. Zanzando pelos escombros em que o circo instalou seus trailers e caminhões, ao lado de um shopping center, conta que o nomadismo também acontece de uma de trupe para outra: "O artista está onde pagam mais e tratam melhor. Não adianta tratar bem e pagar mal, ou pagar bem e tratar mal. Mas nada é difícil para a gente, só a falta de água, o pé na lama. Estudo também é difícil, mas não podemos ficar na cidade, algo nos falta. Falta gente, falta aplauso. Parada, eu fico louca".

No Orfei, o palhaço é vivido em tons melancólicos por Gleiston Guinner, paulista de 24 anos, casado com Priscila Krateyl, acrobata colombiana naturalizada, filha de romena com brasileiro. Dividido entre o Orfei e o Circo di Napoli, Guinner expõe o lado pragmático do ofício de palhaço: "Ganho bem. O que manda é proposta de trabalho. A gente é como jogador de futebol".

Estudo, saúde e cidadania são calcanhares-de-aquiles importantes para a população circense, como atesta Joelma Costa, presidente da Associação de Famílias e Artistas Circenses (Asfaci): "O circense não é tratado como munícipe. Educação é um problema sério. Não dão vaga, muitas vezes os atendentes não estão nem informados de que existe uma lei que obriga as escolas a receber itinerantes de circo e parques de diversão, os alunos-cometa, como falamos. Consulta médica é difícil, pois nunca se sabe onde vai estar daqui a um mês. Na polícia também é complicado, circense não tem endereço fixo".

Nascida no Mato Grosso do Sul, ela é afilhada da cantora Inhana (da dupla caipira com Cascatinha) e cresceu no Circo Disparada, batizado em homenagem à canção homônima do engajado Geraldo Vandré. Fechado o pequeno circo, foi bancária e radialista, casou-se e foi à universidade, onde se surpreendeu ao descobrir que o circo poderia ser seu objeto de estudo acadêmico.

Fundadora da Asfaci a partir de Araraquara (SP), onde mora, defende a vida nômade que já não é sua: "Vai embora com o circo quem não se habitua, quem é à margem. Há muitos preconceitos que é preciso enfrentar. O circo serve como álibi para ladrão atuar na cidade, e o circense é que vai levar a culpa. É como minha mãe brincava, e estou sendo leve: 'Recolhe as galinhas, que o circo chegou'".

Uma das atitudes recentes do grupo de mobilização foi o encaminhamento de uma carta aberta aos prefeitos do País, reivindicando o fim da discriminação dos circenses pelos poderes públicos locais e co-assinada por mais de cem entidades.

Falando da questão dos animais, Joelma aborda uma dicotomia que fica mais à sombra e que opõe proprietários de circos e seus operários: "Muitos artistas reclamam que o dono valoriza mais o animal que o circense. O cara quase fica aleijado, quase se mata, recebe míseros aplausos e um macaquinho vestido faz a alegria da molecada". Mas contrapõe: "Sou radicalmente contra maus tratos, mas o que se vai fazer com os bichos que já estão aí, adestrados? Vai colocar no zoológico? Os domadores e tratadores vão receber indenização? É preferível regulamentar, e aí proibir quem infringe a lei".

Um dos projetos de regulamentação é o do senador Alvaro Dias (PSDB-PR), aprovado no Senado em abril e agora em tramitação na Câmara. Ele se posiciona sobre a disputa em torno dos bichos: "A questão é polêmica, já que muitos animais não são tratados com o devido cuidado. Mas é possível estabelecer uma relação de respeito, garantindo que os animais, muitos deles nascidos nos circos, estejam sempre saudáveis e em segurança. Nosso projeto prevê que o Ibama mantenha um cadastro de todas as espécies da fauna brasileira e fiscalize o cumprimento das normas de proteção e segurança".

Apesar de muitos percalços e da constante tensão entre o "novo" circo e as formas tradicionais, há quem veja no presente momento uma tomada de fôlego do setor, num cenário de mobilização dos próprios profissionais e conseqüentes conquistas junto aos diversos poderes públicos. Diz a historiadora Erminia Silva, quarta geração de uma família de donos de circo: "O segmento está se articulando muito. Com o surgimento das escolas, os novos grupos não têm mais prática nômade. São viajantes, como todo artista, mas têm inserção política e intelectual na cidade. Eu e outros pesquisadores também entramos nessa militância".

Egresso de circo-escola, Hugo Possolo, do grupo Parlapatões, acaba integrando nessa percepção até mesmo o Soleil: "Sua vinda é importante como é importante a vinda de uma banda de rock estrangeiro para o rock que se faz no Brasil. Faz barulho, é um blockbuster que está vindo. É bom porque arrasta um pouco de visibilidade, volta o olhar das pessoas para o circo. Há um estudo que mostra que o circo só aparece na grande mídia quando morre um artista, ou quando um acidente acontece. Ou seja, sempre nos cadernos de cotidiano e polícia".

Em associação com a trupe de "bonequeiros" Pia Fraus, os Parlapatões testam uma nova experiência com o Circo Roda Brasil, em cartaz em São Paulo, no Memorial da América Latina. O espetáculo Stapafúrdyo é o primeiro em que os Parlapatões aderem ao formato tradicional, com lona de design arrojado (não há mastros dentro do picadeiro, e a sustentação se dá por dois arcos externos), cenografia moderna, ingressos a R$ 20 e público predominante de classe média.

Os animais estão presentes apenas como alegorias, na forma de bonecos infláveis híbridos – giravacas, porcoletas – e de coloridos poodles de papel. Uma artista anã, Verônica Ned, 30 anos, integra o elenco, mas Possolo transmite a preocupação de não utilizá-la de modo desrespeitoso. Quase uma mestre-de-cerimônias, a certa altura ela aparece cantando liricamente, com vozeirão digno de diva da canção e secundada por banda ao vivo que brinca com os elementos da música "brega", sob direção de André Abujamra.

Verônica é publicitária, filha do cantor Nelson Ned e está no circo há menos de um ano. E fala assim da exploração freak, sensacionalista, que o circo do passado legou a programas como o Pânico na TV: "Sou amiga dos caras do Pânico, mas é ridículo e medieval o que eles fazem com os pequenos. A gente está em 2006, não sei como o povo acha isso engraçado. As pessoas são cruéis. Mas, se estiverem me abusando, dou ataque".

Não é fortuito o nexo entre música e circo, embora já vá se distanciando o tempo em que o picadeiro era palco preferencial para praticamente todos os cantores mais populares do País, inclusive um Roberto Carlos em início de carreira.

Autor da célebre balada Na Rua, na Chuva, na Fazenda (1975), o cantor e compositor baiano Hyldon dá testemunho: "Comecei a acompanhando cantores como Paulo Sérgio em circos contratados por caras que tinham programas de rádio, eram as caravanas de Mário Luiz, Jair de Taumaturgo etc. Era um 'jabá', os cantores iam de graça em troca de execuções de suas músicas na rádio". Adiante, a estratégia seria adaptada à tevê, sobretudo nas caravanas de Chacrinha.

Não só na música, a lista de artistas com vivência circense é extensa: Pixinguinha, Oscarito, Grande Otelo, Angela Maria, Ronald Golias, Os Trapalhões, Daniel Filho (cujo livro de memórias sobre a Globo leva o título Circo Eletrônico), a maioria das duplas sertanejas...

A historiadora Erminia Silva cita o jovem Silvio Santos como um dos integrantes de shows no circo de seu pai, Charles Barry Silva, entre as décadas de 50 e 60, e fala sobre as conexões entre arte, entretenimento e informação, sob a ótica do circo: "Na origem da tevê e da indústria do disco há muito circense. O debate dos letrados e intelectuais se distanciou de valorizar o circo como patrimônio cultural. Eles não querem ser comparados".

Nesse viés, ela critica também o comportamento dos formadores de opinião. "Na mídia, quando se quer referir a bagunça ou esculhambar a política, se fala em circo, picadeiro, palhaçada. Quando vocês vão colocar o circo como uma coisa séria?", pergunta.

Aos 52 anos, Erminia conta que sua geração testemunhou a extinção dos diversos circos da família ("de 17 primos, nenhum foi de circo"). "Minha geração coincide com a valoração e a valorização social através do diploma. Não foi o circo que perdeu valoração social, mas todos os conjuntos de saberes artesãos, o que vale para benzedeira, sapateiro, costureira, circense, indígena...", justifica.

O assunto poderia terminar por aqui, mas falta ainda o depoimento de um dos rapazes dos bastidores, que recebem o auxílio de exércitos de desempregados de cada cidade para montar e desmontar um circo, na periferia da periferia da periferia.

Fala um faz-tudo do Orlando Orfei, Denilson Oliveira Guimarães, 24 anos, dez de circo: "Faço faxina, sou assistente de palco. Se precisar, sou palhaço. Montar e desmontar é a parte mais difícil, é cansativo. Mas amo a parte que faço, amo de paixão o circo. Não é porque sou analfabeto, podia ser polícia. Minha mãe foi gerente do Itaú, tenho irmão que é capitão da Rota, outro tenente. Eles tentam me convencer a ser como eles, mas é maravilhoso o trabalho de circo. A gente anda a América Latina inteira, conhece um montão de gente. É emocionante".

O circo em que ele mora poderia se chamar Brasil.


(*) versos de "o circo", do sambista baiano batatinha, conforme cantados pela recém-sessentona maria bethânia, no (melo)dramático álbum "drama", de 1972.

(**) reportagem especial publicada à "carta capital" 406, de 16 de agosto de 2006; a foto principal com o elefante bambi, reproduzida acima, é de olga vlahou. aqui, há um link para algumas das melhores fotos feitas por olga para esse trabalho.

quinta-feira, agosto 24, 2006

100% planeta anão

não, por favor, pára o mundo!, que eu não tô agüentando o tanto de amor que a história com "h" bem grandão anda dando de despejar por sobre a gente!

ele nasceu!, e é a coisinha mais linda deste mundo!!!


pelas armadilhas que nos arma essa coisa estranha que chamamos de "realidade", foi exatamente no mesmo dia em que foi anunciado o "rebaixamento" de plutão para planeta anão, para planetanão.

enquanto cientistas & plutocratas comemoravam a "queda" de plutão [e assessorias de imprensa já disparavam aqui no brasil e-mails de nome "como fica o zodíaco sem plutão?"], nascia no zoológico de ostersund, na plutocrática suécia, o minúsculo, maravilhoso e magnífico serzinho acima, deslumbrantemente condensado em 35 cm de tamanho e 100 gramas de peso [alô, dom!!!!]. esse bichinho lindo de explodir de amor é, segundo informam os boletins, um "macaco albino pigmeu".

entendeu?, não bastava ser macaco, é macaco pigmeu, e não bastava ser macaco pigmeu, é macaco pigmeu albino. no mesmo dia em que plutão foi decretado planeta anão.

quer saber?, eu acho mais é que plutão foi "rebaixado" para cima, "promovido" ao avesso, emboscado para cima pelos plutocratas espertos ao contrário que não param de subir para baixo e nem sabiam que vinha aí, esplêndido e camurçado de amor, o mais lindo de todos os macacos albinos pigmeus do sistema solar.

pois vem quente, plutocracia gelada, que os planetanões macacalbinos pigmeus estamos lotados de amor para dar & receber!

quarta-feira, agosto 23, 2006

literatura comentada: 100% plutão

ambos estão em cartaz em são paulo (ou nos melhores cinemas da sua cidade, ou nos melhores camelôs do ramo, ou em download na próxima cyberesquina). são dois filmes de coluna vertebral sustentada na figura conflituosa do pai, da paternidade. os personagens protagonistas, nos dois casos são homens travestis, um deles interpretado por uma atriz, outro deles interpretado por um ator.

"transamérica", de duncan tucker, é estrelado por uma mulher que interpreta um homem que quer ser (totalmente) mulher. embora localizado nos estados unidos da américa, não se passa exatamente na américa, mas antes na transamérica. nesse filme, o travesti É o pai.

"café da manhã em plutão", de neil jordan, é estrelado por um rapaz que interpreta um rapaz que se traveste de (quase) mulher. embora ambientado em territórios idílicos que tentam remeter muitas vezes ao planeta (agudamente pop) mencionado no título, desenrola-se entre a irlanda e a inglaterra, sob alicerces bem mais terráqueos que plutonianos. nesse filme, o travesti É o filho, o filho de um pai, de um "father", de um padre.

tensões pairando na atmosfera entre plutão e a terra, "transamérica" e "café da manhã em plutão" são, acima de qualquer coisa, filmes sobre tolerância, sobre aceitação, sobre conquista - e, dentro disso tudo, sobre paternidade. pertencem, portanto, a modalidades que não vinham sendo muito praticadas no final do século passado, mas que parecem voltar com toda força na outrora tão sonhada (e hoje real) "era de aquário" - alô, "brokeback mountain", alô, "terra fria", alô, documentários brasileiros a granel, alô, etc. etc. etc.

também sobre plutão discursava ind'outro dia, o editorial "a favor de plutão", da na "folha de são paulo". tal editorial oficial, embora irradiado a partir do planeta terra (mais precisamente, da cidade de são paulo), quase parecia provir de plutão. também versava sobre tolerância, aceitação e conquista (e até, nas indiretas, paternidade), mas de modo bem mais desastrado e confuso que os daqueles seus pares cinematográticos.

causava zonzeira estratosférica, o editorial a favor de plutão, a ponto de motivar o exercício de literatura comentada que segue abaixo. sim, estaremos brincando um pouquinho nos próximos parágrafos - mas brincando com seriedade, com esforço (irônico, é verdade) de aceitação, tolerância, conquista, fraternidade.

[burlescos e circenses, os comentários à literatura plutoniana virão grafados em itálicos tombados. os espantos, os maiores deles, luzirão em negro negrito.]



@
"A favor de Plutão
[uai, mas alguém por aí seria contrário a plutão? plutão mereceria nossa oposição? iríamos bombardear plutão, dizimar e exterminar plutonianos da face risonha do sistema solar, do universo infinito (enquanto dure) (enquanto duro)?]

MERECE APOIO [apoiemos! apoiemos!] a definição de planeta proposta por um comitê da União Astronômica Internacional (IAU) [iau!!! ipiaiô!!! aiô, silver!!!!]. Uma das suas virtudes é garantir que Plutão perca seus "direitos planetários" [mas, minha nossa estamira, direitos adquiridos não são direitos garantidos, sacramentados, esculpidos em carrara?! pobre plutão pobre...] [e essas "aspas"?, por que essas aspas?], como defendem os astrônomos que julgam [julguem-no! cortem-lhe a cabeça! cancelem-lhe o status planetário! prisão a plutão!] o astro pequeno ["pequeno"?, minúsculo?, pecurrucho?, assim como um zé-povinho dos aspirantes a planetas?] e exótico [exótico?, bizarro?, anômalo?, assim como um zé-povinho preto, mulato, cigano, circense, anão, gay, transexual, feminino?] demais para ser considerado um planeta.

Descoberto em 1930, Plutão já se consolidou culturalmente como o "mais distante dos planetas" [nada como as sacrossantas tradições culturais para consolidar adequadamente um planeta distante...] [mas e essas aspas, para quê?]. É nessa condição que ele figura em todos os modelos do Sistema Solar. É como planeta que ele aparece em referências científicas e literárias. É de planeta que as crianças aprendem desde cedo a chamá-lo na escola [sim, sim, ó, deus, nos salve esta escola santa!, onde as crianças plutãs desde pequenas também aprendem que princesa isabel foi generosa com os negros plutões, que a escravidão plutoniana se encerrou num decreto, que a lei é igual para todos os plutos e as plutas, todas essas coisas aí tão palpáveis como o éter que enebria plutão].

A sabedoria recomenda que se reconheçam os "direitos adquiridos" [ah, essas aspas, sempre elas...] de Plutão. Se for aprovada pela assembléia da IAU, na próxima sexta-feira, passarão a ser considerados planetas todos os corpos celestes que descrevam órbita ao redor de uma estrela, mas que não sejam uma estrela, e que tenham massa suficiente para que a sua própria gravidade os torne esféricos [uai!, mas então plutão, que era planeta, vai passar a ser... planeta?!!!!! jeca-pluto-tatu ergue o dedo, que uma dúvida o consome: mas, seu moço, é pra nóis sê contra ou a favor da iau? nóis num tá entendendo!].

[mas e a lua?!, ninguém vai nos informar sobre o que acontecerá com a lua após a revolução de sexta-feira?! o satélite da terra estaria em vias de se descolar, de proclamar independência em relação ao, er, planeta que ela rodeia?]

Como efeito colateral [que medo, que grilo, que bode..., "todo remédio que me cura tem uma contra-indicação"?, como já reclamou rita lee?], outros objetos ganhariam estatuto de planeta [surgiriam, a partir da reforma dos estatutos, planetas-negros, planetas-idosos, planetas-anões, planetas-bissexuais, planetas-deficientes (físicos & mentais), planetas-assediados (sexuais & morais)? perigo!, perigo!? tornar-se-ia proibido escravizar física e/ou sexualmente planetas-crianças, planetas-adolescentes, planetões-adultos? perigo!, perigo!, decepe-se o status planetário de plutão!?, ou não!?]. É o caso de Ceres (entre Marte e Júpiter), Caronte (até aqui considerado um satélite de Plutão, mas que na verdade descreve juntamente com este astro uma ciranda ["ciranda, cirandinha, vamos todos cirandar"?! "essa ciranda quem nos deu foi lia (preta-pobre-mulher), que mora na ilha de itamaracá"? "ciranda de maluco, ali em pernambuco(tietê-todo-podre-de-dejetos-despejados-pela-elite-européia-branca-&-limpinha)?], girando um em torno do outro) e "Xena" ["xena"???? aquela das histórias em quadrinhos, a lésbica? ou xena, a dona de pluto? oh, não, pluto é do mickey, da minie, do pateta... santa confusão em quadrinhos de foguetório, batman!] (astro pouco maior do que Plutão descrito em 2005 e que deu "munição" [pow! pow! pow!, alô, dona "veja"-armamentista!] para os que queriam rebaixar [rebaixem-lhe o status! que plutão siga varrendo a poeira de estrelas esparramada pelos anéis de saturno! "quem tá fora não entra, quem tá dentro não sai"! "a cidade não pára, a cidade só cresce, o de cima sobe e o de baixo desce"!!!! ou não?!] o "planeta gelado" [brrrrrr!, aspinhas!] de categoria).

Além disso, ficam na fila [êita, fila de plutonianos que não pára de crescer!, alô, maroca!, alô, poroca!, alô, indaiá!, alô, estamira!, alô artur bispo do rosário!, alô, gentileza (gera gentileza)!] para tornar-se planetas mais uma dúzia de grandes asteróides, a maioria no cinturão de Kuiper, nos confins do Sistema Solar [ah, esses confins de kuiper, versões plutonistas dos desertos do afeganistão, da faixa de gaza, do capão redondo, do jardim gramacho, de pirapora do bom jesus..., que teimam em só querer "tornar-se", "tornar-se", "tornar-se". oh, transamérica-latina queixosa por se tornar!...].

Alguns astrônomos se opõem a essa "proliferação" [...de aspas...] de planetas [ah, esses planetas, que procriam e se reproduzem feito coelhos, feito ratos, feito bichos! esses pobres planetas pequenos, culpados por tanta tragédia que nós, de terráqueos planetas centrais, temos de passivo-agressivamente aturar!, ó, santa nervosa provação!], mas ela é esperada [virá! ela virá!]. Se é em princípio infinito o número de estrelas e de planetas no Universo, não há razão para temer [sim, não, para que temer a igualdade entre os planetas?! cotas planetárias para plutão!! viva a "raça" plutoniana, conquanto não se enciumem venusianas, uranistas, saturninos, marcianos, lunáticas...] contabilizar mais algumas dezenas destes astros em nosso sistema ["no dia em que a terra parou"... "no dia que o sol declarou seu amor pela terra"... "estrelas mudam de lugar, chegam mais perto só pra ver"!...]."
@

reúnam-se os conselhos, decrete-se o feriado. permitiremos ou proibiremos a emancipação de plutão? os sacerdotes-conselheiros andam um tanto confusos e contraditórios, ou essa é só uma impressão tola de zé-povinho?

teremos que decidir por nós mesmos, plebe rude & ignara, se plutão fica ou se plutão sai? aceitariam os conselheiros-sacerdotes nossa colaboração, nossa participação plutoniana nos processos decisórios? plutão é uma democracia (ou é uma plutocracia?)? - ou uma ditadura camuflada entre coxas roliças?

mas, uma vez declamada a democracia e aceita a entrada triunfal de plutão ao time a que plutão afinal sempre pertenceu, poderíamos, todos juntos ("somos fortes"?), gregos & troianas, sentar tranqüilos numa casa de chá de tolerância para um café da manhã em plutão, aqui mesmo na transamérica verde-amarela-vermelha-azul-anil?

segunda-feira, agosto 21, 2006

(outros) 100% brasil

supla é roqueiro punk & new wave, ex-líder da banda tokyo. hoje roqueiro quarentão, supla migrou, nos anos 90, para os estados unidos da américa (do norte), onde plantou sementes de bossas furiosas & outros rocks. roqueiro brasileiro, supla depois voltou para os estados unidos da américa (do sul) e liderou, com bárbara paz e com simpatia, elegância & boa educação, a primeira edição do programa telecircense "casa dos artistas", de silvio santos. herdeiro de matarazzos, supla é desde sempre filho de um tradicional (ex-)casal de petistas de raízes fincadas na aristocracia paulistana.

supla é, em resumo, um playboy, um daqueles típicos que mano brown tratava com arrogância no tempo em que generalizava os playboys e ainda não sabia, como veio a descobrir depois, que "arrogância é burrice". pois, se mano brown se compromete a tentar ser menos burro a cada novo dia, façamos nós o mesmo, e olhemos para supla.


supla vem aí de novo cd, "vicious", co-produzido e bancado pelo coringa da indústria fonográfica rick bonadio, em seu selo arsenal music, distribuição universal (universal music, não universal do reino de deus). antenas ligadas à la mano brown, admiremos "vicious", o novo trabalho do doce playboy do asfalto paulistano.
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demarca no chão de serragem o punk rock de abertura, "pensamentos": "this is no religion", isto aqui não é religião. sim, não é, mas... será que não é? o rock'n'roll não é de fato uma religião, embora roqueiros pauleiros & pregações heavy metal guardem tantas semelhanças com pastores & púlpitos, com padres & paróquias?
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conclui pelas altas rodas o punk rock de encerramento, "badalam os sinos": "tomava de tudo/ mandava ver/ bala, uísque, sei lá mais o quê/ tomava de tudo/ mandava ver/ a noite inteira foi de foder/ oh yeah". lá na favela labutam os falcões, cá no asfalto as águias fazem a festa.

[não causou repercussão na imprensa grande, mas não custa aqui reproduzir uma declaração para lá de polêmica do velho playboy cláudio lembo, ora governador de são paulo, ora administrador de crises pcc, à revista "istoé": "A burguesia não está mais conseguindo oferecer cocaína em baixelas de prata. (...) Essa crise começou quando a polícia conseguiu interromper parte do fornecimento de drogas para a nossa elite. Prendemos 60 líderes do PCC e quebramos por um tempo a cadeia do tráfico. Aí todo mundo entrou em espasmos, o PCC ficou sem caixa e a elite sem cocaína". será um desses, o protagonista do beat acelerado da balada adrenalinada "badalam os sinos"?]
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o grand monde espevitado domina "sweet love", mais uma faixa a evocar as paisagens da high society (alô, alô, marciano!): "abriu um champanhe, morango e chantily/ pediu pra me despir". ela (se) despiu?
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filho de marta & eduardo suplicy, supla faz jus à árvore genealógica híbrida aristrocrática-militante e declina opinião, em "opinião": "fico observando o presidente/ notícias recentes da população/ mais uma história pra entreter/ pode ser pra mim ou pra você/ não estou pregando/ nem concordo/ cultura, política e diversão/ o seu conhecimento não é igual ao meu/ cada um tem sua opinião/ a mídia convenceu/ o que aconteceu/ eu não me informei/ o que vão contar não sei, não sei/ só se lembre que nem tudo é/ do jeito que a gente vê/ sendo um boneco controlado/ milhões de coisas pensam por você/ imaginação é o que devemos ter/ contradição pode acontecer/ e a televisão é mais um remédio/ como se fosse uma solução". musicalmente, tributário apaixonado das transgressões à la lou reed e, sobretudo, das diabruras à la iggy pop. textualmente, lembretes simples, diretos, transparentes, engajados colados à porta fria da geladeira.

[no dvd 100% favela, comentado um tópico abaixo, imagens da multidão reunida na favela godoy, no extremo sul paulistano, focam um homem branco acompanhando o show em meio à multidão quase nada branca: ele é eduardo suplicy, o pai de supla. você já foi à favela, branco(a)? não? então vá...]
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atravessando o espelho, supla se faz fã e narra em "ídolo" o encontro com um seu ídolo (iggy pop?): "não foi metido", "e ainda me chamou para ir ao show". admiração e tietagem não têm classe, não têm profissão - os ídolos também idolatram, também fanatizam. o que significa, no reflexo do espelho, que fãs também podem ser ídolos, que manos também podem ser playboys como playboys também podem ser manos. assim falou mestre mano brown, assim falam os mestres, manos (caetanos?).
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"chat-o-log" digita, o narrador solitário e melancólico em meio à multidão de bips acelerados: "computador ligado/ sem nenhum amor" (...) "adiciono pessoas/ o bate-papo tá chato". é nóis? ou há vida inteligente na vida pós-cyber? e no rock'n'roll anos 2000, o que é que há?, o que é que está se passando por essa cabeça, mister brazil 2000?
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em "só eu sei (living my life)", eclode o exímio melodista. ok, supla duplica, decalca, recicla, cita à exaustão seus ídolos. mas, mesmo assim, custaria muito reconhecer que "japa girl" (prima de "china girl", dos transgressores glitter iggy pop e david bowie) possui uma excelente e aderente melodia? se não custar, já se pode admitir que assim vai também "só eu sei", sob versos de travo amargo, agridoce, melancolicamente sincero: "living my life/ só eu sei/ living my life/ muito errei/ living my life/ até cansei".
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o aristocrata politizado se esbalda em "museu dos pobre", em parte denunciosa, em parte jocosa: "só playboy tem ipod/ e os pobres só se fode". na tentativa precária e algo estereotipada-caricatural de defender "os pobre que só se fode", sobram farpas para seus pares playboys-consumistas-bobalhões: "chegou lá na loja, seu pai vai comprar/ e seu amigo já vai te copiar/ se não bastassem roupas/ computador e celular você vai querer trocar". a conclusão (conclusão?) é taxativa: "só playboy tem ipod". só?
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o tom se eleva mais na saborosa "internar", cujo tema é a familia, a sagrada família brasileira, tanto faz se "erudita" ou "popular": "seu pai só joga e sua vó birita/ a família tá louca, seu avô só de touca/ (...) morar nessa casa é um show de horror/ porra, sua irmã virou atriz pornô".

e vem o refrão, e estamira adentra os lares da tradicional família proprietária brasileira: "vão ter que internar/ vão aturar/ vão desacreditar/ que você tá muito louco/ nesse lar". afinal, mano ou playboy, quem é que não tem um maluco na família [isso se não forem vários, isso se o(a) maluca(o) não for mesmo você], não é mesmo?
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pois bem, se o punk rock de butique investe contra família, costumes, política etc. e tal, haveria de deixar de fora o sexo, a sexualidade? não haveria, e vem daí a dupla mais gostosa de canções alopradas no aloprado disco do playboy rebelde, mas bonzinho.
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"porque eu só quero comer você" se explica pelo título. "e eu não ligo pro que vão dizer/ e eu não ligo mais pra nada/ porque eu só quero/ comer você/ a noite inteira/ comer você." o pudim punk é sabor branco-manjar com ameixas pretas, e a gatinha come "cara de safadinha" não há de ter resistido a tamanha e tão formosa cantadinha. supla, explícito, deixa de lado os pruridos e vem fazer companhia a tati quebra barraco, a deize tigrona, à expressão sexual de asas livres-leves-soltas. do rock paulista ao funk carioca, vovó axé music se emancipa? (carmen miranda vestiu uma camisa listrada pós-moderna e saiu por aqui?)
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por último, mas não em último, há "arrasa bi", do renitente refrão "arrasa, bi!/ arrasa, bi!, arrasa, bi!". essa foi apresentada em primeira mão há cerca de dois meses, para a platéia-multidão da parada da diversidade sexual 2006, em plena avenida paulista.

[junto com supla no trio electro-elétrico-eletrônico estava seu ex-colega de "casa dos artistas" alexandre frota, aquele que, você sabe, expandiu a carreira de ator global para a de ator pornô - estreará, em breve, um filme co-estrelado por um travesti que também já passou pela "casa dos artistas" de seu silvio, o pai da filha evangélica abravanel número quatro, aquela que deve no futuro assumir o espólio sbt. juntos lá no alto, supla e frota ensaiavam tentativas de tolerância, de convivência com vários extremos, de flexibilidade e maleabilidade. a multidão aplaudia.]

[a temática, ali ao lado de frotinha, roçava incomodamente em tabus de liberdade desenfreada e prostituição, diria alguém. mas, ora, direis, ouvir estrelas?, que atirasse a primeira pedra quem nunca roçara de levinho em temas prostitutos, entre artistas globais, músicos universais, jornalistas jabazeiros, operários de fábrica, modelos magérrimas, jogadores exemplares de futebol, jornalistas muito rebeldes na escrita (mas às escuras muito submissos ao patrão), médicos em consultas de 7 em 7 minutos por nobres convênios de grife, médicos comissionados por digníssimos laboratórios (de manipulação), advogados vorazes, políticos caixa 2, empresários caixa 2, dondocas dasluzes, operárias dasputz, padres inquisidores, pastores dizimadores, marketeiros ensolarados, corporativos & corporações em geral, a torcida toda da seleção brasileira... ou vai bancar a falácia de que puta, nesta bendita família, é só a geni?]
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o vocabulário de museu de "arrasa bi" elabora o mundo gay-lésbico-bissexual-transgênero-etc.-"fashionista"-"moderno"-midiático brasileiro em doses mordazes de bobo & bom humor, mas também em doses atrozes de caricatura & estereótipo: "tô montada/ acuenda/ é um luxo/ não faz a pobre/ eu faço a fina/ pega na neca/ no intimus/ com esse bofe". cê tá entendendo?

[entre palominos & herchcovitchs citados na letra, sobressai a(o) musa(o) underground paulistano(a) michael love, da boate a loca (não tentarei descrever a doçura áspera de michael love, vá ver você). desajeitado, supla joga holofote em quem merece holofote, ainda que depois despiste, desnecessário, dizendo ao mix brasil que aprendeu as gírias todas no cabeleireiro - santo estereótipo ressabiado, batman! que fim levou robin?!]

[a loca (tá louca, estamira?!) também está explicitamente citada no disco "lá nos primórdios", da valorosa playgirl marina lima, que na versão vivaz "vestidinho vermelho" (original anglo-americano-performer-transformer de laurie anderson) recorre à citação d'"aquele inferninho" de modo algo mal-humorado, algo intolerante. o "vestidinho vermelho" de marina é o "arrasa bi" de supla; são tentativas loquazes da música popular brasileira de retornar por cima àquele ambiente de marginálias a que ela de resto sempre pertenceu, desde que furaram os olhos do assum preto para ele assim cantar melhor, desde muito antes.]
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"arrasa bi", a faixa-achado de brazilian-"vicious" (alô, mr. lou reed, let's take another walk on the old old wild side?), soa como versão paulistano-brasileira do travesti de punk-new wave sigue sigue sputnik, em terras tropicais onde já cantaram corujas & pirilampos, secos & molhadas (sim, travesti - e você, travestiu?), camadas e camadas na grande cebola da tortuosa expressão popular brasileira.
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a seu modo, o primo playboy roqueiro supla se empenha em escancarar um armário que é em tudo parecido com o armário que o primo mano rapper mano brown se empenha em escancarar: o da tolerância.

a boa nova, transfigurada nesse nobre vagabundo marketeiro, playboy do cabelão descolorido, 100% brasileiro distraído, é o esforço de abertura por parte do rock'n'roll, esse travesti de plumas rebeldes muitas vezes machonas & misóginas & homofóbicas & classistas & elitistas.

e você, vai tolerar? consegue, até quem sabe, vir a apreciar as tribos "exóticas" (exóticas?) do outro lado da fronteira-membrana que separa de você o mundo-junto? arrasa, bi!

quinta-feira, agosto 17, 2006

100% brasil

coisa finíssima, raríssima: a gravadora (bem) nacional atração fonográfica está distribuindo o espetacular dvd "100% favela", que, segundo os manos que o produziram, é o primeiro de nossa história a ser produzido na favela, pela favela e (majoritariamente) para a favela.


a liderança do projeto é do grupo de rap negredo, que locomove o projeto periferia ativa na favela godoy, capão redondo, periferia sul da abandonadíssima e estressadíssima são paulo - o mesmo local onde acontece o festival "100% favela", esse que virou dvd de produção, finalização e conteúdo esmeradíssimos.

é essa a história, mas há muito mais, dentro do disco rígido de embalagem colorida: um documentário sobre a construção de bastidor do festival (sob direção de sophia bisilliat), depoimentos de periféricos ativos como ferréz, sérgio vaz, gog etc., sessão de criação no estúdio de gravação com negredo e mano brown, passeio pela madrugada da sul com mano brown no volante, discurso de mano brown durante a entrega de um prêmio nalgum lugar da sul, debate de ferréz e dos negredo com mano brown...

em outras palavras: após um período em que mv bill esteve surfando em todas as ondas do hip-hop popular brasileiro [e da mídia, é nóis!], mano brown volta de manso a se pronunciar, a interferir, a acrescentar, a se posicionar. [você pode até torcer o nariz - "e o que é que eu tenho com isso?" -, mas se liga, mano(a), que dizer "mano brown" e "mv bill" hoje em dia é como dizer "chico buarque" e "caetano veloso" em 1968, ou como dizer "john lennon" e "bob dylan" nos estados (des)unidos de cima & de fora.]

trabalhando numa entrevista com ferréz, para a edição 407 da "carta capital", acabou que transcrevi do dvd várias amostras do pensamento em movimento de mano brown - coisa rara, rara, raríssima, que não é todo dia que a gente consegue se aproximar do imaginário de um cara como esse.

vão abaixo reproduzidas algumas das falas de brown - e, mana(o), não esquece que o que ele pensa e diz lá na periferia faz espelho simétrico e invertido (esperto ao contrário, estamira?) com o que a gente pensa e diz aqui no centro (ops, você está no centro? eu estou no centro? onde é o centro da superfície de uma bola?).

1
brown discursa sobre "arrogância" e "humildade" ao receber um prêmio da cooperifa, prêmio de manos para manos, cultura de mano a mano [e de mano para playboy, será?]:

"humildade é sabedoria. arrogância é burrice, e muitas vezes eu fui burro. a burrice vem da neurose, do ódio, da revolta. você passa na frente de uma favela, dá ódio, dá raiva. dá raiva até da favela. por que eles aceitam isso aí? por que nós não vamos fazer alguma coisa? a revolta traz a arrogância. você pode tratar um playboy com arrogância, um cara porque tem os olhos verdes e não é a mesma cor que a sua. você acha que ele é rico, vai tratar ele mal porque você viu gente igual a você sofrendo. isso é burrice, eu já fiz isso".

mais adiante, ele arremata, gênio:

"vou tentar ser menos burro daqui para frente".

2
na mesma ocasião, brown reflete sobre fama e solidão:

"é uma honra estar aqui entre vocês. a minha falha é não estar sempre, mesmo porque tenho problemas, tenho inimigos, preciso ganhar dinheiro para pagar as dívidas que fiz depois que fiquei famoso. porque isso é uma prisão, acontece isso. que saudade eu tenho de quando eu era só mais um mesmo andando na multidão, desconhecido. infelizmente não dá para ser mais isso, mas vamos administrar os problemas que aconteceram depois."

(...)

"às vezes não estou junto, mas preciso estar junto, não me abandonem. às vezes eu fico sozinho, dentro do meu mundo pequenininho de problemas individuais meus. não me abandonem, me chama, me liga. por incrível que pareça eu estou facinho, firmeza?" [ele ri, todos riem].

3
brown dirige o carro na madrugada grande da zona sul, e pensa alto, e fala:

"já sonhei eu preso várias vezes. já me imaginei várias vezes sendo preso, várias vezes. morto, nem tanto".

4
no estúdio de gravação do cd "mundo real" (atração fonográfica, 2006), do negredo, brown parlamenta com o grupo, tenta melhorar a letra de um rap, copia-a manualmente num caderno, coloca-se sutilmente contra o excesso de violência no poema [e tensiona o ambiente]:

"tem uns baratos que acho que tem que pôr uma rima. (...) três frases seguidas sem rima, isso não pode. (...) 'chumbo grosso, tiro, tensão'... o que você acha de tirar essa palavra 'tiro'? chumbo grosso já é tiro...".

5
conversam brown, ferréz e os rapazes do negredo. sobre o papel do rap, primeiro [atenção para as fagulhas de autocrítica, de periferia para periferia (da periferia para o centro? do centro para o centro? do centro para a periferia? quem vai encarar?)]:

"rap não é a música de realidade? não foi a coluna que segurou toda essa estrutura de rap de todo mundo aqui? o que é a realidade da periferia? pobreza, trabalhador também, ladrão também, cara também que é playboy e mora na quebrada, playboy de favela que vive às custas do pai, vários. enquanto ele tem um pão e um cafezinho com leite de manhã par ele tá bom. no dia que faltar ele quer meter revólver".

6
brown reflete sobre ser elite [brown também é elite? e você que mora aí no asfalto, você é mano(a) também?]:

"para virar elite basta você estar numa corrida, se a coisa acontecer do jeito que você quer, está arriscado a virar elite. o cara pode ver o brown e falar 'o brown é o rap de elite, venceu'. (...) a gente mesmo forma a elite, pode se transformar em elite sem ver. (...) eu sou um escravo, eu nem sou elite, eu sou um escravo da elite".

7
o tema ainda é o rap, mas a discussão, agora, versa sobre "união" versus "individualismo" [você já ouviu falar desse assunto, aqui no cimento-purpurina? aliás, qual seria o lema do "centro"?]:

"se você parar para analisar, periferia é desunido. o rap ainda é uma exceção que fala de união dentro de um lugar que não se fala. qual é o lema da periferia? 'cada um, cada um.' e o rap, o que é? 'é nóis na fita', é outra idéia. esse bagulho de 'é nóis', 'é nóis' é coisa de rap. malandro quando tem dinheiro se joga. o cara quando ganha um dinheiro vai embora, ele tá ligado, os próprios caras de quebrada vão crescer o olho, vai cavar uma casinha para ele cair. e o rap ainda pega o contrário, 'vamos tentar'. vocês [refere-se aos negredo são unidos, tô vendo que vocês são unidos. não é tão individual assim. (...) é uma teia. fora daqui você não vai ver isso muito, você não vai ver isso na rua. essa união que nós estamos falando não existe em lugar nenhum, em movimento nenhum, em profissão nenhuma".

8
todos discutem as relações do rap brasileiro com a música brasileira, com a mídia brasileira. brown intervém [e fala de alienação, e se refere a outros com algum grau de incompreensão e intolerância (os mesmos que os do "centro" dedicam aos de "periferia"?), e, de quebra, faz mais autocrítica]:

"vocês estão colocando o rap como se fosse o centro do universo da música, e não é, né? se você parar para analisar os outros compositores de outros estilos musicais, tá todo mundo fechado num mundinho também. pega música da zélia duncan, tá falando daquelas poesias dela vagas, que só dizem respeito a ela e à namorada dela, ou namorado. pega qualquer outro, caetano veloso está no mundo dele, também, de intelectual inteligente pra caralho. não tem como os pobres analfabetos entender o que caetano veloso muitas vezes fala. tá todo mundo meio elitizado, meio no seu mundo. o rap também. é tribo, várias tribos, tribo de roqueiro, de reggae, de rap. dentro da nossa tribo, nós somos alienados na nossa cultura. o rap também é alienado, nós somos alienados na nossa cultura de rap".

instala-se um debate com ferréz, eis trechos velozes:

ferréz - "pro cara pobre você não compactuar com a elite é um crime, é um crime, porque o cara quer pertencer àquilo, e você diz não. nossa, você ofende ele, mano".

brown - "que tipo de pergunta [feita pela mídia] poderia quebrar as pernas de um grupo de rap hoje? eu não vejo, a ponto de quebrar as pernas, na televisão, a ponto de prejudicar o grupo...".

ferréz [simulando a pergunta] - "'o que você faz pela favela?'".

brown - "um tipo de pergunta dessa você tem que responder com outra pergunta. 'eu te pedi voto? eu pedi voto para alguém? eu sou cantor de rap, não sou...'".

ferréz - "um cara me perguntou isso uma vez, em vez de explicar o que eu faço eu falei assim: 'e o que o caetano faz pela favela? vende um milhão de discos'. 'ah, mas ele não fala de favela.' eu falei: 'não interessa, o assunto da música pode ser o que for'.

brown - "ele não é brasileiro?".

ferréz - "ele tá aqui, ele pode ser assaltado... então, o que ele faz?".

brown - "é isso que eu acho errado. o rap não é obrigado a fazer as coisas. é lógico, ele faz de coração, certo? mas por que o rap é obrigado a fazer e o chico buarque não é? (...) é uma pergunta para punir você por ter tocado no assunto, 'vou te punir porque você cutucou a ferida'".

ferréz - "uma vez o chico césar me disse uma coisa que ficou guardada para mim até hoje. mano, o que vocês fazem através de um livro, de um cd, é mais do que qualquer projeto social. você dá orgulho no cara que tá trancado no quarto dele. à luz da vela, você dá orgulho no cara. o cara cantando sua música na rua, trampando de camelô, você dá orgulho nele, você injetou um bagulho que ninguém injeta, nenhuma ong, nem escola, nem nada. então esse trabalho já é muito, mano".

9
o assunto agora é a qualidade do rap, e dê-lhe mais autocrítica na tela colorida de seu dvd [está acostumado? eu nem estou, essa parte não está nas "páginas da vida"...]:

"pra quem curte rap, é necessário que ele se mod... não vou dizer modernizar, mas..." [alguém diz 'evoluir', outro menciona 'profissionalizar'] ...o mais rápido possível, senão não vai sobrar nada para ninguém, porque as pessoas estão reclamando muito da ruindade do rap. falta qualidade, falta tudo. falta som, falta luz, falta letra, falta batida, falta idéia. as próprias pessoas que curtem estão reclamando da pobreza do rap, pobreza em todos os sentidos, entendeu? de idéia, de roupa, palavra, som, banheiro sujo, ambiente carregado. o nosso próprio povo quer modernizar".

10
e conclusão, ainda é necessária alguma conclusão explícita? pois tem, sim, senhor(a):

"o cara que vem da favela tem que se impor o tempo todo, o tempo todo ele tem que se impor".

100% favela, 100% brasil, pois não?

sexta-feira, agosto 11, 2006

toni tornado na br-2006

e aí você está diante da tv, assistindo o cara no conforto da sua poltrona, família homer, rede globo. e o cara lá, fazendo papéis sempre subalternos, um perpétuo prisioneiro do sistema, do esquema.

mas e se o cara tem toda uma história por trás, que você nem pode supor ao apenasmente vê-lo viver tantas cores na telinha, sempre interpretando o "escravo", o "capataz", o "leão-de-chácara"?

está ele lá, dando sopa...

e a você?, já lhe ocorreu perguntar sobre a história por trás desses caras & dessas caras todo(a)s que aparecem por aí todo dia, boiando no circo eletrônico? ou eles batem no seu espelho, olhos capatazes de lá e de cá, emparedados pelo medo de saber mais sobre as coisas que estão no mundo e pelo hábito de sempre admirar, pelo espelho, apenas a superfície, a película cor-de-rosa, a(falta da)quele "hype" nosso de cada dia de que nos fala nossa amiga-vizinha denise?

[o que poderia haver atrás do espelho? você? ele? alice? outro você?]

sras. e srs., com vocês o grande, grande, grande músico, ator e ativista toni tornado, recolhido das páginas de "carta capital" 403, 26 de julho de 2006. podiscrê, amizade, há muito mais coisas entre o céu-inferno da dinamarca & o inferno-céu do brasil do que supõem nossas v(f)ãs filosofias...



TONI TORNADO NA BR-2006
O ator recapitula as agruras que o afastaram da carreira musical

POR PEDRO ALEXANDRE SANCHES

Quando Toni Tornado subir ao palco para cantar seu maior sucesso, BR-3, estará quebrando um tabu que se estende desde pouco depois de aquela música ter se consagrado vencedora do V Festival Internacional da Canção (FIC), em 1970. Estará interrompendo a recusa a reviver os tempos de cantor pioneiro de soul e funk à moda brasileira, que se avolumou a ponto de ele hoje ser conhecido apenas como ator global de novelas e seriados, em personagens quase sempre secundários.

A volta se dá no contexto do festival Soul Brasil, que reagrupa no sábado 22 e no domingo 23, no Sesc Pinheiros de São Paulo, nomes como Hyldon, Luis Vagner, Bebeto, Carlos Dafé, Banda Black Rio, Claudio Zoli e Max de Castro. O empenho para convencer Tornado a participar foi de Wilson Simoninha, diretor da reunião e filho do cantor Wilson Simonal (1939-2000), colega de infância de Toni numa escola agrícola no interior do Rio de Janeiro. "Era uma escola de recuperação de menores, foi brabeira", lembra o artista, que em geral tem se mantido reticente também ao contato com a imprensa.

Voltar a cantar não é fato isolado: Tornado, 75 anos, já ensaiava uma mudança de postura em novembro do ano passado, quando fez um desabafo público durante a entrega do Troféu Raça Negra [CartaCapital 370], na Sala São Paulo, um elegante reduto da "minoria branca" brasileira. "Todos sabem que trabalho numa emissora eminentemente branca, e que consigo sobreviver no meio disso tudo. Mas vocês não têm idéia do que é ser negro trabalhando naquele lugar", disse, chorando, diante de celebridades e autoridades constrangidas.

Sua história musical foi-se dissipando com o passar do tempo, mas é repleta de lances tão espetaculares quanto dramáticos. Vão do aperto de mão do então presidente Emílio Garrastazu Médici no Palácio das Laranjeiras, em 1970, a prisões sucessivas (ele contabiliza nove passagens pelo Dops), de quatro anos vividos nos Estados Unidos, na década de 60, até o exílio político, nos anos 70, em países como Tchecoslováquia, Chile, Uruguai, Egito e Cuba.

O convescote com Médici se deu pela torcida do presidente para que BR-3 vencesse a fase internacional do V FIC e consolidasse, assim, a recente vitória do País na Copa do Mundo e o projeto de integração nacional que a TV Globo ajudava a propagar.

Tornado avalia, hoje, a adesão-relâmpago do presidente-general ao movimento black que se avolumava no País. "Ele que não o fizesse naquele momento. Estava pedindo a vitória não para mim, mas para o governo dele. Não fui lá de bom grado, até porque ia contra todos os meus princípios o regime militar, apesar de eu ser militar também. Fui por imposição."

Enquanto isso, a edição daquele ano do festival era tomada por uma voga avassaladora de "música negra brasileira". No ano anterior, Simonal havia chegado ao auge de popularidade, em antológicos shows fora de competição no IV FIC. O movimento se amplificou na etapa nacional do V FIC, com Tornado e o Trio Ternura cantando a vitoriosa (e dramática) BR-3, o maestro negro Erlon Chaves comandou um coral negro com a debochada Eu Também Quero Mocotó, de Jorge Ben (sexto lugar no resultado final), e o arranjador Dom Salvador apresentando Abolição 1860-1960 (quinta colocação).

Embora branco, o estreante Ivan Lins levou o segundo prêmio imprimindo acento soul à ufanista O Amor É o Meu País. O samba, até então tido como expressão maior da música negra brasileira, chegava no máximo à sétima colocação, com Meu Laiaraiá, do também novato Martinho da Vila.

No mesmo contexto de imposição, Toni participou com outros artistas de shows patrocinados pela ditadura, como nas Olimpíadas do Exército, que estigmatizaram Elis Regina como simpatizante do regime. "Chegava um aviso, 'estamos convidando o senhor, o preço acertado antecipadamente é xis, agradecemos sua participação'. Eu não tinha acertado preço nenhum, era uma intimação, não tinha como escapar", conta o artista.

Setores progressistas voltaram baterias contra artistas como Elis e Simonal – esse, envolvido em espisódios violentos e nunca totalmente esclarecidos, viu se grudarem em si as pechas de colaboracionista e delator, mas acabou condenado e preso pelo próprio regime militar, em 1974. Tornado comenta o "patrulhamento", liderado pelos jornalistas do tablóide O Pasquim: "Eles não entendiam que o que faziam no fundo era um desserviço. No fim, mesmo eles acabaram cassados. Estava todo mundo no mesmo barco".

Ele opina sobre o que considera um componente racista na ruína de Simonal: "Como é que um cara chega no Maracanã e vai reger um coro de 40 mil pessoas? Como é que esse cara vai ter duas Mercedes, morar em Ipanema e ter os três últimos andares do prédio só para ele? Como é que as socialites ficam todas falando 'ai, que negro lindo', 'como ele é charmoso'? Isso incomodava, muito. Eles precisavam de alguma coisa para acabar com Simonal, mas poderia ser um outro negro qualquer". Poderia ser ele mesmo – como foi, guardadas as proporções.

A história secreta do que aconteceu no intervalo entre o boom negro, o cumprimento do general e o exílio do cantor num país do bloco socialista permanece obscura, mas começou a ser elucidada pelo pesquisador e testemunha ocular Zuza Homem de Mello, no livro A Era dos Festivais – Uma Parábola (editora 34, 2003).

Lá está documentado, por exemplo, o escândalo causado por Erlon Chaves (1933-1974) na final internacional do V FIC, com concorrentes de vários países e transmissão mundial a partir do Brasil (nessa etapa, BR-3 ficou apenas com a terceira colocação). Ao apresentar Eu Também Quero Mocotó fora de competição, Chaves, que então namorava a jovem Vera Fischer, se fez acompanhar por quatro louras seminuas que dançavam ao seu redor e o beijavam sensualmente.

O maestro, que trabalhava com Simonal, Elis Regina e a Globo, foi advertido, interrogado pela Censura Federal e preso por conta do episódio. "Comentava-se que as esposas de alguns generais ficaram extremamente ofendidas com sua performance", relata Zuza no livro.

A fala de Toni Tornado, hoje, vem enriquecer a compreensão sobre o clima radical instaurado a partir do FIC de 1970. Tornado lembra que também causava desconforto seu namoro e casamento com a atriz Arlete Salles, que era uma das apresentadoras do festival. "Eu dediquei o festival a ela no ar, aí foi para matar. Daí para frente foi só porrada. Quando eu ia ao cinema com Arlete, aquilo incomodava as pessoas a ponto de deixarem bilhetes no carro, falando 'negro sujo, procura a sua raça'. Era nessa base."

E havia a questão política. Durante o percurso de BR-3, Tornado portava no peito a tatuagem de um sol, símbolo dos Panteras Negras, força motriz do movimento black power norte-americano, de cuja influência ele voltou embebido dos EUA. "Depois tive que fazer um peeling, tive que raspar aquilo tudo. Estava me sentindo mal, estava um peixe fora d'água. Não tinha muito a ver com a nossa política interna. Aqui é mais flower, mais florido. É uma pena, porque é um racismo velado, é feio, é pior", avalia.

O fantasma do vínculo com os Panteras Negras ressurgiu em 1971, durante o VI FIC. Tornado participou de uma apresentação da presidente do júri, Elis Regina, em que ela cantava a provocativa Black Is Beautiful, dos louros Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle.

"Imagine Elis cantando comigo hoje cedo, na rua do Ouvidor/ quantos brancos horríveis eu vi/ eu quero um homem de cor. Eu saí de lá algemado, porque tinha cerrado os punhos durante a música." Os punhos cerrados cruzados sobre a cabeça eram outro gesto característico dos Panteras Negras. A marcação sobre Tornado também ficou cerrada.

Em campanha amplificada pelo colunista social Ibrahim Sued, BR-3 (composta por Antonio Adolfo e Tibério Gaspar) foi classificada como apologia cifrada às drogas, entre outras razões porque falava em "estrada multicolorida". Tornado recusa essa versão: "Se eu fosse um postulante... Não era o caso. A gente corre, a gente morre na BR-3. BR-3 não é nada mais que a estrada da vida, entende?".

Um disco compacto com a música Deus Negro foi interditado pela Censura. Dois álbuns foram lançados entre 1971 e 1972 na Odeon (hoje EMI), o primeiro deles com duas músicas especialmente compostas por Roberto e Erasmo Carlos e o segundo com o funk Podes Crer, Amizade, sucesso até hoje em bailes black Brasil afora. A seguir, Toni saiu da gravadora, para até hoje nunca mais voltar à indústria fonográfica.

"Fomos mandados embora da Odeon pelo Milton Miranda, que era o diretor musical, porque estávamos querendo inovar. Fomos eu, Simonal, Dom Salvador, Oberdan Magalhães (da futura Banda Black Rio), os agitadores musicais da época. Vinha pressão do próprio governo, 'vamos tirar essa negrada daí'. Eu gravava tudo que era chamado pelos americanos de protest song. Eu trouxe para cá e tentei impingir essa situação aqui, mas entrou num choque que você não tem idéia."

Sob pressão, Tornado passou a se retrair. "Algumas pessoas falavam 'olha, nós estamos sabendo, cuidado que isso pode te trazer um problema mais sério'. Eu, também já preocupado com família, comecei a tomar meus cuidados. Se bem que não adiantou muito também, não (ri). Foi uma barra. Mas a gente conseguiu vencer. Hoje está tudo bem, moro aqui num condomínio bom, casinha, minha piscininha, meus cachorros", ele recapitula.

A reconstrução aconteceu dentro da Globo. A emissora tem hoje 41 anos de idade, 32 dos quais testemunhados por Tornado, na pele de personagens que vão de capatazes de escravos a pais-de-santo e, num momento de ápice, o guarda-costas de Getúlio Vargas, Gregório Fortunato (na minissérie Agosto, de 1993). Nos anos 80, incrementou a atuação no cinema, iniciada já na época de BR-3, participando de filmes como Pixote: A Lei do Mais Fraco (1981), Quilombo (1984) e, mais recentemente, Redentor (2004).

Afirma que é histórica a tensão de trabalhar na Globo, que ele verbalizou ao receber o Troféu Raça Negra. "Eles mandam tomar laser para escurecer. Tem situações em que, se pudessem, pintariam até, para escurecer. Sonia Braga fez aquela mulher lá que subia no telhado, Gabriela (na novela homônima, de 1975). Era a mulher do Antônio Pitanga que ia fazer, Vera Manhães. E não fez, quem fez foi Sonia Braga. Pintaram a dona, mandaram a dona para a Bahia jiboiar no sol. Essas coisas todas é que violentavam a gente, até em termos étnicos."

Mas o que lhe teria dado coragem de romper o próprio silêncio, após 32 anos? E como reagiu a Globo a seu desabafo? As duas respostas vêm simultâneas: "Me afastaram, mas eu já estou acostumado. Eu quero que eles me mandem embora, que eu já estou cansado. Eu não quero mais compactuar com isso, não. Estavam todos infiltrados lá naquele dia, depois que acendeu a luz é que fui ver o que tinha de diretor global lá dentro. Na hora não falaram nada, é o famoso tapinha nas costas, 'valeu, Tornado, é isso aí'. Depois eu senti, quando me chamaram no quinto andar".

Chamaram para dizer o quê? "É tipo 'nós estamos falando isso em nome da empresa, como se dá o direito de ir para lugar público e falar da empresa da maneira que você falou?'. Estou cansado disso, já recebi muitos memorandos. Não foi o primeiro nem vai ser o último", volta a desabafar.

Mas faz isso enquanto assiste à ascensão do ator negro Lázaro Ramos, na condição incomum de um dos protagonistas da novela Cobras & Lagartos, como Foguinho. "O Foguinho é o ator principal, né? Essas coisas são boas, a gente fica muito feliz e fala até com certo orgulho, porque a gente plantou tudo isso."

Ele diz que procura observar de perto e aconselhar os novos que chegam. "Eu posso, tenho cabedal para falar com os atores, quando estão começando aqui na Globo. Tenho oratória, falo com a negrada nova que chega, 'olha, dom, dá um jeito aí, não está legal', 'não deixa esse cara falar assim com você', 'não fale isso', 'não é por aí do jeito que você está seguindo'. Porque eles se empolgam, é normal. Eles ouvem, pelo menos os conscientes sabem da minha representatividade dentro do contexto negro."

Esse senso de observação diz respeito à música também: "Me afastei, até obrigado mesmo, mas a minha praia sempre foi música, sempre. Continuo ouvindo de tudo, e continuo sabendo, sem falsa modéstia, de tudo. Só não participo mais". Se o palco do Sesc Pinheiros terá o poder de animá-lo a querer reconquistar o posto abandonado de músico popular brasileiro, o futuro próximo é que poderá dizer.

segunda-feira, agosto 07, 2006

todo artista tem que ir aonde o povo está?

simone cantava feito cigarra; milton nascimento dava a cara a tapas & beijos nos bailes da vida; a alma de gilberto gil e da platéia cheirava a palco & folia; roberto carlos aproximava 1 milhão de amiga(o)s só bulindo com os côncavos & os convexos; a polícia-política pedia documentos, a blitz só tinha instrumentos; industriais, empresários e trabalhadores de fábricas, gravadoras, televisões, rádios e folhas preenchiam os vazios de suas (nossas) vidas com neon.

enquanto acontecia tudo isso (& muito mais), havia bell marcondes, do outro lado do espelho.

mas quem é essa mulher? quão longínqua e distante de tu é o estribilho dela? ou, pelo outro lado do espelho de alice, quão vizinho e próximo de tu é o cotidiano dela? que indústria(s) te alicerça(m)? que tipo de sangue-carne-osso jorra dentro de ti, pororoca-pirapora-nossa?

"protegido" pela capa alaranjada da profissão de jornalista, tentei me aproximar do que sempre foi próximo de mim, na "carta capital" 401, de 12 de julho de 2006.

vou te contar que doeu, desta vez doeu demais. mas quero falar de uma coisa, também: que depois, para lá da dor (e, mais ainda, para lá do medo de sentir dor), havia tanta belezura, tanta delicadeza, tantos sentidos serenos, tantos simples sorrisos.

n'estamira estaríamos todos nós, a comunidade inteiriça, o baile todo, masculino & feminino, a sociedade?


DA INDÚSTRIA À VIDA NA RUA
A produtora musical que visitou as drogas e a indigência, e voltou

Por Pedro Alexandre Sanches

As luzes se apagam para que comece o show de algum grande ídolo da canção popular. De cima do palco, tudo parece estar perfeito. Lá atrás, um exército permanece em discreto movimento, garantindo que o espetáculo aconteça. Ali se abrigam histórias de imperfeição, de coadjuvantes anônimos como, por exemplo, Bell Marcondes.

Hoje com 50 anos, ela atuou entre os anos 70 e 90 como produtora artística e musical, administradora e divulgadora em escritórios ligados às carreiras de Simone, Roberto Carlos, Milton Nascimento, Almir Sater, Zé Ramalho, Joanna, Fábio Jr. e Zélia Duncan, entre dezenas de outros. Profissionalmente, atuou nos bastidores de catarses coletivas como o espetáculo Canta Brasil, veiculado pela Rede Globo em 1982, e shows da campanha pelas Diretas Já, empunhados por Chico Buarque e a nata da MPB da época.

Esteve sumida a partir de 1995, porque tinha se tornado "moradora" de rua, que foi onde esteve até a virada do século. Hoje, torna-se visível por que escreveu o livro autobiográfico Estou Viva – Não Uso Mais Drogas, editado primeiro de modo artesanal e lançado comercialmente neste 2006, pela editora Semente.

Após 19 anos em que esteve fortemente comprometida com o abuso de drogas (principalmente cocaína) e álcool, Bell não os consome desde 18 de novembro de 1999. No dia em que CartaCapital chega às bancas, completa seis anos, sete meses e 19 dias em abstinência – "só por hoje", como ela sempre acrescenta, seguindo a praxe dos grupos de ajuda mútua em que se apóia para prosseguir essa nova história.

Bell refuta a tese de que a indústria musical, movida a altos graus de pressão e exigência, forneça combustível explosivo para histórias como a sua. "Aquilo é máquina de prazer. Não há momento mais especial que a hora em que se apagam a platéia e a luz de serviço do palco, para começar o show. Fica todo mundo no escuro ao mesmo tempo: o artista na coxia, o público quietinho na platéia, todo mundo ligado na mesma emoção."

No livro, refere-se constantemente ao show business como fonte maior de prazer: o convívio com grandes artistas, carros e hotéis de luxo, viagens, o dinheiro recebido e gasto em dólar. Mas era a fase mais inflada, acelerada e mercadológica da indústria musical, nas décadas de 80 e 90, e ela também descreve inúmeras cenas de abuso químico em banheiros de aeroportos, hotéis, turnês, intervalos de shows, feiras, megaeventos etc.

"É um falso mito essa história de que o meio artístico está cheio de droga. Não é mais ali do que em outros lugares. Durante sete anos, de 1973 a 1980, não precisei de nada. Comecei a usar em 1980. Construí toda uma carreira sem a carreira, depois é que ela apareceu", sustenta. "Não é específico, pode ser aquela empregada que fica três horas dentro do ônibus e chega para trabalhar numa casa onde há toalha para tudo. Na casa dela, a família inteira se enxuga na mesma toalha. Quer mais pressão que isso?"

Prova disso, para ela, é o fato de que uma de suas fontes atuais de sustento é a série de palestras que faz. Tem sido chamada para falar em ambientes tão diversos como empresas estatais, condomínios milionários, escolas religiosas, sindicatos, fábricas de cachaça etc.

CartaCapital a acompanhou numa dessas palestras, para funcionários do turno da madrugada de uma grande empresa de serviços públicos. Bell encontra os trabalhadores ao final da jornada, dispersos, arredios, barulhentos, hostis ao tema. Logo estão silenciados pelo lado dourado da história (o do show business), que ela narra com perspicácia e franqueza. Mas a mesma franqueza é utilizada para iluminar o lado sombrio.

Conta que é filha de mãe solteira que era filha de mãe solteira, na mesma ramagem familiar a que também pertenceu Monteiro Lobato. Que a mãe também trabalhava no turno da madrugada, numa enfermagem de pronto-socorro, atendendo a pacientes que chegavam baleados da Boca do Lixo. Que, enquanto isso, passava as noites sozinha, em casa. Que foi violentada quando bem criança. Que, quando a mãe morreu, em 1995, não lhe restou nenhum parente. Que, na rua, ficou cheia de piolhos e com nove dentes na boca.

A platéia familiariza-se, torna-se participativa. Um homem clama a religião como solução, ela responde na ponta da língua: "Religião sozinha não funcionou para mim. Quando fui só à psiquiatria ou à psicóloga, não funcionou. Quando fui só nos grupos de ajuda mútua, voltei a usar. Para mim, nada isolado funcionou. Só a combinação de tudo". Uma mulher revela que o marido passou pelos mesmos problemas. Ao final, vários funcionários pedem seu e-mail. Bell parte, quase 4 horas da manhã.

Algumas das primeiras dessas palestras aconteceram em 2004, em Brasília, numa clínica psiquiátrica e também na Secretaria Nacional Antidrogas da Presidência da República. Ela descreve o gosto de flash-back ao pisar no aeroporto: "Revivi um flash-back muito forte, de tudo. Do show, da loucura, o medo, tudo. Mas não fui entrar na lojinha para ver se as garrafinhas de uísque ainda estão lá. Isso não interessa".

Este é o momento oposto ao da ascensão e queda simultâneas, iniciadas quando trabalhava na empresa Cigarra Produções, da cantora Simone, entre 1978 e 1985. "Simone tentou muito me ajudar. Muita gente passou a vida me ajudando, me ajudando, me ajudando, até não agüentar, até não saber mais o que fazer com aquela tranqueira", lembra.

A fase pós-Cigarra ela viveu intercalando internações em instituições psiquiátricas (inclusive uma que serviu de cenário para o filme Bicho de Sete Cabeças) e comunidades religiosas com trabalhos sem vínculo fixo para artistas como Ronnie Von, Benito di Paula, Gilliard, Trem da Alegria e muitos outros. Foi das primeiras a trabalhar com Zélia Duncan, então Zélia Cristina – abandonou o trabalho pelo meio, sem prestar satisfações.

"Meu plano era de morte", resume aquela época, que culminou com anos de consumo cotidiano, ininterrupto e "insano". Ajuda veio até de Roberto Carlos, com quem trabalhou em conexão com os empresários Attílio Vanucci Filho e Robson Paraíso, ambos mortos precocemente, o primeiro num acidente automobilístico viajando de um show para outro e o segundo, assassinado durante um assalto. Foi Roberto quem pagou o enterro de sua mãe.

Essa morte foi o episódio que precipitou a ida de Bell às ruas – não por acaso, são os relatos da perda da mãe e da vida na rua que a levam às lagrimas, em palestra ou em entrevista. "A maior dor que senti na rua foi de querer chegar a algum lugar e não conseguir, não ter para onde ir", documenta a situação-limite de perda de identidade. "Se era de dia, queria que ficasse de noite, para eu dormir. De noite, queria que amanhecesse, para acabar a noite, porque morria de medo dela. É horrível."

Pedia esmolas para comprar cachaça e dormia nas imediações do Hospital das Clínicas, o mesmo local onde buscou as primeiras tentativas de socorro, ainda nos anos 80. "Minha árvore ainda está lá. Construíram um estacionamento, mas deixaram as árvores. Passo ali, pelo amor de Deus, dói muito. Meu maior medo, hoje, é da rua." O vínculo com o HC persiste até hoje, por intermédio do Programa para Dependência Química da Mulher (Promud), do Instituto de Psiquiatria. "Tomo um tarja vermelha, antidepressivo, anticompulsivo e antiobsessivo. Já estou com meio comprimido por dia, cheguei a tomar 20", explica.

A virada rumo à recuperação, após mais de quatro anos na indigência, se deu a partir do HC, da psicoterapia com uma profissional voluntária e da descoberta dos grupos de ajuda mútua. É um modelo de terapia grupal que surgiu nos Estados Unidos, em 1935, com os Alcoólicos Anônimos, e cuja metodologia inspirou, mais tarde, redes como Narcóticos Anônimos, Jogadores Anônimos e correlatos.

No Brasil, tais grupos têm crescido e se espalhado pelo País mais recentemente. Sob garantia recíproca da manutenção do anonimato lá fora, são freqüentados tanto por "cidadãos comuns" quanto por roqueiros em atividade ou atores da Globo – Dennis Carvalho e Andréa Beltrão são "celebridades" que já falaram publicamente sobre experiências particulares nesses grupos.

CartaCapital também acompanhou Bell a uma dessas reuniões, em que ela atua como secretária-coordenadora. Cada participante se apresenta e diz há quantos anos, meses e/ou dias se encontra "limpo", completando com o lema "só por hoje" e seguido por congratulações dos companheiros. Se não está "limpo", apenas se apresenta e diz “limpo só por hoje”, sob exclamações de incentivo dos demais.

Os depoimentos individuais seguem-se, sem interferências, muito menos julgamentos de uns sobre os outros. Misturam-se entre os 25 participantes da reunião brancos, pardos e negros; ricos empresários, free-lancers e desempregados; soropositivos; atletas e ex-atletas; prostitutas e ex-prostitutas; artistas plásticos etc. Quem chegou calmo parece sair calmo, quem chegou nervoso parece ficar menos nervoso. Finda a reunião, cada um segue separadamente de volta para o seu dia-a-dia.

Bell sintetiza a eficácia do grupo: "Só quem sofreu os horrores do alcoolismo e da drogadição pode entender o que o outro está sentindo, entender a dor de não conseguir parar, entender todo aquele comportamento desonesto, manipulador, em que a droga está à frente de tudo".

No passo a passo em que tem vivido desde 1999, ela passou também pelo programa de tevê de Netinho de Paula (ver CartaCapital 360), onde obteve um tratamento dentário gratuito e ganhou o computador com o qual viria a escrever o livro. Explica com simplicidade a razão de ter omitido do texto a importância dos grupos de ajuda: "Porque eu só aprendi a falar isso agora".

Também é simples a justificativa sobre por que decidiu se superexpor, abrindo sem reservas histórias íntimas e dramáticas: "Prefiro me expor como uma dependente química e alcoólatra em recuperação que ser reconhecida na rua como 'nóia', aquela bêbada que dá escândalo, cheia de piolho na cabeça na porta de um escritório de produção artística, consegue imaginar o constrangimento? Eu já vinha me expondo de forma muito negativa, por muito tempo. Agora ninguém vai falar nada, já contei tudo, está tudo às claras".

A auto-exposição em grupos, livro, palestras e diante de jornalistas complementa-se: "Tem de falar, falar, falar, falar. Você pensa que não cansa, que não dói? Nossa. Mas creio que é a única forma para eu não voltar a usar. É dizer que dá para parar de usar droga, não importasse o quão fundo a pessoa possa ter ido". E conclui: "Antes, a droga era o foco para usar. Hoje ela é o foco para não usar. E continua sendo o foco".

Ainda ressabiada, Bell batalha hoje um retorno, assessorando o inventivo grupo feminino Samba de Rainha. Diz que, intimamente, trabalha para sanar aos poucos dívidas "morais" que acredita acumular. "Meu sonho cor-de-rosa é levar um livro para Simone e outro para Zélia, mas e o medo de não ser recebida, de ser rejeitada? Minha desculpa era o dente, quero ver que desculpa vou dar agora que estou com um teclado novo. Mas preciso ir, mostrar que estou viva, prestar minha homenagem, pedir minhas desculpas."

Outro sonho já é realidade, "só por hoje": a casa em que mora de aluguel no bairro de Perdizes, uma edícula reformada por ela ao fundo de um extenso terreno. Hoje, a casa lhe dá direito a muitos vizinhos, uma bananeira e uma piscina em frente, um céu de cidade de interior e a companhia da cachorra Pop – e também lhe faz ter vontade de chorar.

"Preciso fechar o teto e colocar um piso, porque assim me lembra os barracos em que vivi. Fora isso, é um paraíso." Por entre vícios públicos e virtudes privadas, esses capítulos acontecem longe de holofotes, flashes e refletores – mas são vividos por Bell Marcondes como protagonista, não como coadjuvante. E são episódios que acontecem em todo canto, a qualquer momento.

quinta-feira, agosto 03, 2006

prata da casa, ouro na rua...

um pequeno aviso à(o)s navegadore(a)s: eu serei, a partir deste setembro que já está chegando, o curador da temporada do projeto "prata da casa", do sesc pompéia, em são paulo.

a proposta do sesc, para esses shows gratuitos que acontecem na choperia às terças-feiras, é apresentar artistas ainda pouco conhecidos dos quais, entendo eu, a casa espera ter o orgulho de dizer no futuro: "passaram aqui pelo nosso palco quando estavam bem no começo ainda".

[aliás, a título de breves exemplos, já passaram pelo prata, no pretérito, a barca, adriana capparelli, alda rezende, arícia mess, arthur de faria, barbatuques, berimbrown, cabruêra, casuarina, céu, ceumar, chico pinheiro (com maria rita e luciana alves), chico saraiva, cidadão instigado, cordão do boitatá, daniel carlomagno, de leve, dona zica, fabiana cozza, fernanda porto, fred martins, jumbo elektro, junio barreto, lado2estéreo, lampirônicos, los pirata, lucas santtana, ludov, makely ka & kristoff silva & pablo castro, marcelinho da lua, moisés santana, mombojó, mônica feijó, nhocuné soul, numismata, osvaldo pereira, quinteto em branco e preto, ramiro mussotto, satanique samba trio, silvério pessoa, tereza gama, tiago pinheiro, totonho & os cabra, vanessa da mata, veiga & salazar etc. etc. etc.]

ou seja, a gestação do novo, como nunca pára de acontecer (oba!).

completando essa fórmula de pratas da casa, o curador do projeto tem de ser sempre um, er, crítico de música - e aí estou eu, desta feita, êita.

mas, então, os requisitos exigidos pelo sesc pompéia são:

a) que o, er, curador eleja as atrações dos shows semanais entre artistas brasileiros (de todos & quaisquer cantos) que já tenham lançado no máximo um cd e no mínimo nenhum cd, er, "oficial";

b) que o material para avaliação (cd "oficial", cd demo, fita cassete, vinil, serenata...) seja remetido ao sesc pompéia (rua clélia, 93, pompéia, são paulo, cep 05042-000), aos cuidados do "prata da casa".

dali, eles vão cadastrando e repassando tudo que chegar ao, er, curador - e aí, brrrrrr!, a gente vai ver o que é que vai acontecer...

então é isso. se este aviso fizer tocar algum sininho no ouvido dalgum(a) navegante-artista-performer que esteja de passagem nômade aqui por este blog, então o recado está passado (e, de quebra, a gente vai fazendo aqui nosso reality show, little brother, tempo real, ondequando-tudo-se-mistura, junto-e-misturado, esses brinquedos todos aí).

vai fazer bom tempo, viva o novo de novo!